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domingo, 23 de abril de 2006

A carta







Só agora reconhecia o sentimento mais íntimo que escondera até de si mesma. O que mais desejava era que Fábio não voltasse. Desejava que gostasse tanto de Milão que não quisesse mais aquela vida medíocre que levavam. Mas agora entendia que sua máscara havia caído e que declarara o fim daquela vida pacata e linear, que tinham.
César dizia-lhe num sussurro:
─ Conte a ele a verdade, conte que já não o quer mais!
Ela ria dele, como é que podia pensar que as coisas se resolveriam com uma verdade crua.
─ César, como é inocente!
Toda quinta-feira recebia um envelope, sob sua porta, cheio de rabiscos quase ilegíveis. A cada nova carta recebida maior era o descontrole e mais latente a vontade de escrever palavras que registrassem a febre que lhe tomava a alma.
Mas a última que enviara para ele, tentara ser direta, dizendo que não sentia mais a sua falta, que queria acabar com aquela espera e que seria melhor assim.
Talvez essa correspondência viesse com boas novas, contando que ele encontrou uma outra pessoa, que está realizado e que também não sente saudades dela. Por si só a carta já era diferente, sem remetente, vinha apenas com o timbre do consultório que Fábio trabalhava. Rasgou o envelope, cheia de esperanças vagas e suspirou com a possibilidade de tudo ser real.
Dessa vez a carta vinha datilografada, finalmente teria entendido que seus garranchos eram hieróglifos ilegíveis?
Pela primeira vez não iria sofrer ao decifrar seu conteúdo, nem ter que adivinhar palavras para entender o significado de cada linha.
Quando abriu, percebeu que essa era uma correspondência incomum, antes de tenta ler, percebeu que a carta estava acompanhada de uma passagem, ida e volta, com destino à Milão.
Seu coração dava pulos não queria ir a Milão, como poderia negar qualquer que fosse o pedido, fora de seu território? Sentir-se-ia acuada, encurralada nas armadilhas dele. O que estava pensando? Acreditava que tivesse sido clara com ele, não queria mais o compromisso.
Foi tomada por um ódio convertido em lágrimas, César a amparou com um gesto, e abraçou-a, trazendo seu rosto molhado de encontro ao seu ombro, não disseram nenhuma palavra, ele apenas se ateve ao movimento de acolher as dores dela.
Estava cheia de problemas que a impediriam de levar qualquer relacionamento adiante, disso ele sabia bem, compreendia-a sem nenhuma acusação breve, sem esboçar nem mesmo o que pensava. Sabia de seus defeitos, de suas insanidades, de seu egoísmo extremado.
Cecília se perguntava por que Juliano era assim, compreensivo demais, já estava farta e embora já estivessem separados há mais de um ano, sentia que ainda a tratava como a esposa amantíssima e devotada.
Era como uma prisão, mesmo de longe ele a sufocava, vigiava seus passos e para completar o quadro, sua família fazia questão de ser muito presente. Pais prestativos, perfeitos e para Cecília isso soava como provocação e não como carinho. Parecia que os parentes dele esfregavam na cara dela o tempo todo, o quanto tinham uma família perfeita, enquanto a dela não passava de elos fracassados.
Sobrava apenas a compreensão de César, que era abominado pela família de Fábio, aliás eles o ignoravam, essa era a verdade, fingiam que ele não existia, causavam um enorme desconforto, pois ele era seu amigo há anos, a ele cabia uma das poucas referências familiares que ela tinha.
Já os Nogueira eram intragáveis, insuportavelmente felizes, talvez por isso não vejam sua própria dose de hipocrisia e um dia ainda despejaria isso neles.
Por que não mandou a passagem para sua mãe, que era fascinada pela Europa?
Qual a motivação de enviar a ela um convite tão tentador?
Estava tão curiosa, que mal podia esperar para ler a carta, só agora dava-se conta que se interessara pela retórica de seu “ex-marido”.

Os olhos centenários








Acendia um cigarro atrás do outro, sem parar de pensar nos olhos azuis daquele senhor, de alguma forma ele a perturbava. Há mais de dois anos que ela morava ali. Sempre o vira sentado naquele mesmo tamborete na porta da confeitaria. Solenemente ele a cumprimentava, todas as manhãs e todo esse tempo, ela se dava ao trabalho de responder seu cumprimento. Mas Cecília não havia reparado ainda na sua roupa, na sua elegância, parecia viver em outro século, camisa engomada, cheia de furos por conta das pequenas brasas que caiam do cachimbo, barba branca com um tom amarelado por conta do tabaco, prestou atenção também em suas botinas novas, lustrosas. Tinha um ar europeu, mas nenhum sotaque.
Diariamente ele se ocupava da arte de desfiar o fumo de corda e na hora que ela passava por ele, parecia sentir o voo de seu vestido de popelina barata e ao sopro do seu bom dia, ela respondia bom dia.
Entrou para confeitaria, pediu o de sempre, pães franceses, alguns biscoitos de nata, presunto, leite e seus cigarros. Ao sair ele estava lá ainda, compenetrado no desfiar do fumo, ao perceber-se observado ergueu o olhar, sob um chapéu de palha panamá, surpreendeu-se com o azul de seu olhar, tão azul que quase a fez chorar.
Mordeu o canto da boca, segurando o choro e o lábio inferior com o dente, apertou um dos lados do vestido, com a mão esquerda para que ele não voasse e percorreu em carreira acelerada de volta para casa.
Estava assustada, mas repleta de uma felicidade inexplicável, quase infantil. Sabia quem era aquele homem, lembrava-se perfeitamente dele. Mas como poderia passar por ali dois anos seguidos, em frente à confeitaria e não tê-lo notado?
Seu coração palpitava como se quisesse sair pela boca e segurava o peito, precisava se acalmar, respirava fundo e tentava esquecer, aquilo só podia ser mais uma de suas visões, não poderia ser real.
César logo desceria, preparava a mesa do café, enquanto seus pensamentos não saíam do homem, mas ele não poderia estar ali, lembrava de seu colo, dos carinhos que recebia quando menina, o cheiro do tabaco, tinha as mãos carinhosas e cheias de cicatrizes, a pele tão fina que dava pra ver as veias, ossos e nervos se mexendo. Recordava-se que ele a colocava sobre o muro baixo, que ficava de frente para a rua, falando das suas histórias do exército e de suas grandes batalhas. Contava dos morteiros feitos com panelas de pressão, pólvora e pregos, falava da Revolução de 32, da batalha de Sobradinho, da destruição e do incêndio de uma bela biblioteca, do seu amigo surdo que foi pedir rendição e acabou morto, das explosões, de tantos amigos mortos, da travessia de rios, dos passeios pelas trincheiras e para ela tudo parecia canção de ninar. Sim, aqueles olhos azuis mareados pediam o afago que só pequenas mãos dariam, tão pequenas que sumiam na felpuda barba branca.
Parecia Papai Noel, em sua aparência física, mas disfarçava-se bem, quando o Natal se aproximava, as crianças logo o descobriam, debaixo de seu chapéu panamá. As camisas de cambraia, os suspensórios e as calças de linho, não enganariam as crianças mais atentas. Nesses dias preferia ficar em casa, dispensava suas caminhadas matinais e jogava seu corpo sobre uma cadeira de balanço que rangia sobre o assoalho de madeira. Gostava dele, tinha um ar soberano, mas isso não a assustava, mais um cigarro.
César tomara seu chá preto, beijara-a rapidamente e saíra apressado e dessa vez não arrumou sua gravata e nem se despediu dele na porta, submersa em suas lembranças infantis, ele cheirava a tabaco, tantos diziam não ser um cheiro agradável, pra ela esse era o cheiro de sua infância. Pegou sua bolsa e saiu. Decidira ganharia o dia, passear no mercado municipal, sentir os cheiros e sabores de um tempo que não volta mais. Deu-se o direito de recordar.

sábado, 22 de abril de 2006

Em casa




Preparava o chá preto, como fazia todas as manhãs, César gostava de tomá-lo sempre correndo, enquanto ela ajeitava sua gravata. Todo dia a mesma coisa, já se acostumara com aquela rotina. Mas quando ele saía e ela fechava a porta, parecia receber um soco no estômago, daqueles que fazem perder as forças. Ali agachada, como se atingida por um golpe, perguntava-se os motivos de ser tão fraca.
Seu passado a perseguia, as alucinações pareciam cada vez mais fortes, passos pareciam estalar no andar de cima, nada que fizesse os calaria. Tremores, suores, delírios, tudo aquilo deveria ser parte de um tempo distante, que abandonara há anos, mas a realidade diária era o medo de ser descoberta e que mais uma vez voltasse para a clausura, para o esquecimento de si.
César estava desconfiado de seu comportamento, já se perguntara milhões de vezes sobre seus pesadelos, pavores inexplicáveis e essa fobia por pequenos barulhos e até pressentia algumas vezes suas alucinações.
Encheu a xícara, a mão estava trêmula, o bule parecia ter vida e tremelicava, acrescentou muito açúcar para a quantidade de chá e o tomou apressada e arfante, com o olhar voltado para cima, como que no desespero que o caminhante descesse ao seu encontro. Apertou os olhos, como de costume, para fugir de suas visões e logo os passos e o pavor cessaram.
Descalçou os chinelos e amarrou os cabelos, para começar a arrumação da casa, ergueu-se em um solavanco e caiu no chão, como se atingida mortalmente, viu-se sendo arrastada pelos cabelos, amordaçada, com membros ensangüentados, como que se estivesse sido esquartejada, olhava para cima, na tentativa de reconhecer seu agressor, mas o rosto estava oculto pelas sombras. Tentava lutar, mas era impossível, era mais forte que ela.
Viu de relance, sentada na cadeira da sala, uma mulher jovem, que acalentava um bebê, cantava uma cantiga, em um dialeto estranho, enquanto dava o peito, num claro sufocar da criança, encarava Cecília, seus olhos eram chamas avermelhadas.
Sacudiu a cabeça e mais uma vez, sentiu-se golpeada. Os olhos fixos, negros, quase angelicais, e aquela mão de dedos finos, quase femininos, era aquela mão que a arrastava há anos, mas não conseguia ver mais que isso, desmaiou.
Despertou no chão da sala, havia batido com a cabeça em algum móvel e estava sangrando, aquilo sim, lhe traria problemas, teria que explicar ao seu marido um tombo, um tapete, um desmaio talvez.
Tirou a camisola manchada, subiu as escadas e começou a preparar o banho, teria que ir ao médico, pois o corte era profundo. Encheu a banheira com água morna, quase quente, mergulhou e por um instante viu-se deitada, naquela água transparente e limpa, como era bom se sentir em casa.
Só decidiu sair da banheira depois que a água esfriou, quando abriu os olhos, César a observava, quieto, imóvel, parecendo não entender nada. Justificou-se a Cecília dizendo ter esquecidos seu pager e por isso voltara para casa, mas a observava há alguns dias e sabia que ela não estava bem.
Não sabia se ainda confiava nele, podia estar ali apenas conspirando contar ela, mas se quisesse machucá-la já teria tido outras chances.
Cecília se levantou da banheira e ele gentilmente a apoiou para sair, ficou ali, atento, olhando-a pelo espelho. Tentou até esboçar um sorriso, mas parecia exausta, vestiu-se e adormeceu no trajeto, até o hospital.
Sentia as sombras dos postes que impediam os raios de sol, de tempos em tempos e mesmo com os olhos fechados, tinha a sensação de estar dentro da película de um filme, um sono quadro a quadro, até despertar com o barulho da porta do carro se abrindo.




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sexta-feira, 21 de abril de 2006

Fuga






Depois que golpeou Amadeus, sentiu pena, remorso, culpa. Foi o único que a compreendeu naquele lugar, apenas ele estendeu-lhe a mão com carinho, talvez até se amassem. Cecília nutrira bons sentimentos por ele, mas isso não a impediria de fugir, queria sentir-se solta, longe dali, injetou-lhe todo o conteúdo da seringa, que estava pré-destinada à ela.
Não sabia distinguir seus próprios sentimentos, como interpretar os alheios?
Deu-lhe um beijo aos prantos, sentiria sua falta, acariciou sua face e deixou-se recostar em seu peito pela última vez. Espiou o corredor, tudo estava vazio e silencioso, pelo adiantado da hora as pessoas provavelmente estavam dormindo.
Assustava-se com cada sombra, com cada mínimo barulho que ouvia, foi assim até alcançar o banheiro feminino. A luz era forte e branca, feriam os olhos noturnos e assombrados, quando se acostumou com a claridade, olhou-se no espelho, no que se transformara? Não podia crer que era ela refletida ali, um animal acuado, com medo da própria sombra, olhos esbugalhados, respiração rápida e inconstante.
Tinha que ficar calma, encheu os pulmões de ar, como se aquilo ajudasse, de algum modo, apertou sua mão direita sobre o peito, num acalanto de si e começou a revirar os armários e em um deles encontrou um uniforme de enfermeira, vestiu-se, penteou-se, olhou-se mais uma vez para se certificar que estava bem disfarçada, não pretendia ser notada e saiu descalça pelos corredores por não encontrara nenhum sapato.
Mas quem olharia para os seus pés agora, todos dormiam. Ao encontrar a última porta, o vigia levantou a cabeça se despedindo, “boa noite, Marie!” Ela respondeu com um breve cumprimento, sem encarar o homem e saiu.
Olhou para a vastidão escura que a esperava, não havia lua naquela noite, as estrelas cintilavam plenas, como se soubessem que ela estava solta e as luzes amareladas dos postes não abriam tanta claridade quanto ela precisava. Um calafrio percorreu-lhe a espinha, estava livre, mas para onde ir?
Quase sentiu saudade da clausura, do barulho de suas abelhas, da beleza de seu jardim, dos carinhos de Amadeus.
Sentiu em seu íntimo que a liberdade utópica era menos complicada que a verdadeira. Não queria pensar em nada, queria seus pensamentos livres como ela, soltos, descalços, sem direção, sem regras. Respirou fundo e correu o quanto suas pernas permitiram.
Depois de uma caminhada frenética, encontrou um banco de praça e se sentou, os pés tinham bolhas, alguns pedregulhos estavam presos entre a pele, enquanto arrancava-os sem o mínimo cuidado, os ferimentos sangravam, o seu corpo pedia para se deitar, mas na cabeça uma voz alertava-a, se parasse agora seria capturada e levada de volta, e isso não queria.
O dia já estava amanhecendo, logo perceberiam sua fuga. Olhou em sua volta, só havia um bêbado deitado na sarjeta, cantarolava algo, mas ela não distinguia o que, ali sentada, observou em uma vitrine sapatos carmim, lindos, flamejantes. Uma pedra e os sapatos estavam em seus pés, mais uma vez fugia. E o bêbado gritava, “agora ela tem sapatos vermelhos, a enfermeira tem sapatos vermelhos!”
Sentia fome, sede, medo. Depois de ter andado muito e o dia estar claro, avistou uma pequena cafeteria, entrou, sentou-se. A atendente veio e ela pediu apenas um copo d'água. A moça com uma saia curta e olhos gentis, logo trouxe a água. Cecília bebeu de uma só vez e levou as mãos ao bolso, dissimulando o esquecimento do dinheiro. “A água é por conta da casa”, disse a atendente, comentou que não parecia bem, se precisava de ajuda, Cecília perguntou onde ficava o banheiro.
Viu-se no espelho assim que entrou e sua aparência estava péssima, ligou a torneira e passou água pelo rosto, pescoço, e ajeitou os cabelos mais uma vez. Os olhos estavam apáticos, seu pavor era tanto que seu coração ecoava dentro de seus ouvidos. Revirava o pescoço, com vigor e passava a mão pela nuca, tentando relaxar um pouco.
“Precisa de ajuda?”, perguntou uma senhora bem idosa, com vestido colorido, com muita maquiagem nos olhos, cabelos que de tão acinzentados pareciam azuis e uma voz compadecida e carinhosa, insistia, “se precisar de alguma coisa é só pedir!”
Acenou que não, com a cabeça e a senhora completou, “deve ter sido uma noite difícil!”. Cecília em silêncio respondeu: "não imagina o quanto!" e sorriu.
Olhando-se no espelho e sua imagem invertida faz uma pergunta perturbadora: "fugira de si mesma, todo esse tempo?"

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quinta-feira, 20 de abril de 2006

No sanatório



No sanatório
Ali deitada, no meio de sua urina e de suas secreções, mais parecia um bicho sujo, feio e repugnante. Os seus conselheiros naqueles dias sumiam, não davam conselhos nem a culpavam. Recordava de suas horas, de suas noites, antes de estar ali. Unhas pintadas num carmim encarnado, cabelo sempre arrumado e do cheiro de lavanda que tinha. Não era mais nem a sombra daquela mulher, finalmente estava livre das pessoas, das taças cintilantes, dos burburinhos, das risadas falsas, das superficialidades. Tinha saudade do vinho de boa safra, de seus cigarros.
O canto mais escuro daquele quarto a acalentava. Mesmo com todas as perturbações diárias, ouvir os gritos que vinham de fora, despertar no meio de sua própria imundice, sentia-se melhor ali do que no meio de tanta hipocrisia.
De sua janela gradeada podia ver o jardim, cheio de margaridas brancas, petúnias, havia manhãs que as rosas sussurravam, riam-se dela e em outras as abelhas faziam um barulho ensurdecedor.
Logo uma enfermeira perceberia que ela estava acordada e viria cuidar dela.
As pessoas daquele lugar a tratavam bem, só fugiam à regra quando tinham seus problemas pessoais, descontavam nas injeções, na maneira de tratar os pacientes. Por suas mãos sabia quando estavam bem ou não.
Elas eram boas, davam-lhe banho, falavam com ela, mas preferia os enfermeiros, eles eram tão cuidadosos.
Agora limpa e composta em sua camisola de algodão cru, sentia-se mais humana. Bem que ele poderia chegar agora, ver seus cabelos ainda molhados, seus olhos calmos de abril. Seu coração batia no compasso dos passos dele, o sentia bem antes que entrasse no corredor, vinha com seu jaleco branco azulado, que cheirava água sanitária, sua marcha percorria toda a ala, para depois invadir seu quarto.
Seus passos tinham um barulho diferente, cada passo dele era um orgasmo latente nela.
Suas passadas aproximavam-se sisudas até a porta de seu quarto, mas quando entrava e fechava a porta parecia trazer toda ternura em seu olhar. Ele trazia a civilidade que ela necessitava, trazia suas mãos, com seus dedos finos e toque suave. Ouvia seus batimentos cardíacos, viraria seus olhos, olharia sua língua.
Seus dedos fugiam do estetoscópio, procurando os seios e naquela altura ela se lembrava de como eram os homens, só queriam saber de si, mas ela já não se importava mais, tinha sido mandada para aquele inferno, por ter descoberto seu marido infiel e pedófilo. Conhecia bem os homens, pelo menos com aquele era diferente, ele a usava e ela tinha consciência disso e o usava também. Talvez nem soubesse dizer quem era a vítima real do assédio, olhava-o com desejo e queria-se limpa para esperá-lo.
Já havia perdido a conta de quantas vezes ergueu a camisola, para que a olhasse, para que a tocasse. E numa noite de surto psicótico seus dedos descobriram seu colo, seu sexo e tudo o que queria acontecera ali.
Apenas suas visitas quebravam as crises temperamentais, a vontade de gritar e de se matar. Ele não sabia, mas se tornara o sentido da vida dela, embora César sempre aparecesse para visitá-la, ele era como um irmão, respeitoso demais.
Enquanto gozava, pedia baixinho por mais calmantes, queria ficar desacordada, chegava desejar ser estrangulada, por não suportar mais a vida.
Ela não tinha cura, se ele a liberasse se mataria. Esquizofrenia, alucinações, faziam parte de seu quadro clínico. Jurava ter feito sexo com todos os enfermeiros dali, mas nenhum admitiria tal fato. Mas o psiquiatra era sua razão de viver.
No fim, ele tinha o cheiro dela em seu jaleco, que já não estava tão alvo, ela recebia uma dose de calmante e dormiria até o outro dia, para acordar no meio se suas secreções.
Mas naquela noite, tudo seria diferente, ela conspirava meses consigo mesma, até pensar em uma maneira de se livrar de tudo.
(...)





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Colcha de retalhos



Colcha de retalhos

Resolveu pegar toda a roupa velha e confeccionar uma colcha de retalhos, como sua avó paterna a ensinara tão bem. Camisas e calças velhas iam se transformando em pequenos quadrados de retalhos de tecidos. Assim era sua vida, uma colcha de retalhos, os fatos pareciam calças e camisas, mas na realidade eram apenas fragmentos de uma colcha de acontecimentos. Estava cansada de fugir de si mesma e de seus monstros internos, tinha todas as chaves, talvez encontrasse algumas portas.
Otávio era um homem bom, por isso ainda insistia em viver com ele todo aquele tempo. Nem um pouco parecido com Fábio, o boníssimo e respeitado: Dr. Fábio Ontero, médico, um dos mais conceituados em cirurgia plástica da região, que a tratava como uma boneca de louça aos olhos alheios, mas tinha várias amantes e uma vida dupla. Não queria relembrar daquele crápula infame, aquele sim sabia onde golpear.
Escolhia os retalhos mais coloridos para costurar.
A imagem dele com a filha de Carmen era inesquecível, as descobertas sobre a vida secreta dele deixou marcas.
Lembrava-se da morte trágica de sua filha, do quanto ele era culpado por tudo aquilo e as lágrimas molhavam os retalhos avulsos.
Naquela noite havia convidados, a casa estava cheia e bem que César tentou alertá-la sobre casar-se com alguém que mal conhecia.
Fábio fazia questão daquelas festas, dizia que davam um brilho especial à vida, sem dizer que receber elogios era muito bom.
Cecília tinha como passatempo predileto, enquanto fora casada com ele, promover festas e eventos beneficentes. Depois que concebera Amanda as festas cessaram. Na primeira festa depois do nascimento de sua filha estava muito satisfeita, pois os donativos dariam para abastecer o orfanato por mais de um mês.
As taças estavam cheias do melhor champanhe, música agradável, ambiente amistoso, tudo maravilhoso, no padrão de todas que ela promovia. E na manhã seguinte estaria no topo de todas as colunas sociais, sabia que era invejada e aquele sentimento de êxtase, por hora, acalentava os seus males. Gostava também de se sentir útil, mas os peitos pediam a filha, procurou por Fábio, para que ficasse de olho no andamento do Buffet, mas não encontrou. Avisou então para a governanta que iria se ausentar e que se sentissem sua falta, para que pedisse desculpas e contasse que ela foi alimentar a filha. Lembrava-se costurando retalho a retalho.
Subiu os dois lances de escada em silêncio, tentando enxugar os seios molhados, teria que trocar a blusa, agora toda molhada de leite, quando levanta os olhos depara-se com a cena, Fábio e a filha caçula de Carmen, uma menina de doze anos, não acreditava em seus olhos, aquilo não poderia estar acontecendo, não agora, não ali.
Perdeu o controle e começou a gritar compulsivamente. Apavorado, Fábio a golpeou, ela escorregou desmaiada por um dos lances da escada, enquanto a menina ajeitava o vestido, ele ordenou, “vá para o banheiro e só saia de lá quando eu mandar!”
Aplicou em Cecília um calmante forte e a levou para o quarto. Supôs que ela fosse dormir a noite toda e desceu com a menina pela escada auxiliar, que dava para os fundos da casa, continuando com a fornicação, enquanto não dessem por falta deles.
Mas com o bebê chorando, Cecília se levantou e colocou o peito em sua boca e adormeceu depois que a filha silenciou. A criança tentava vencer o seio pesado, mas era inútil, estava fadada àquela morte cruel. Como estava dopada, não percebeu que sufocara a criança com o próprio seio, impedindo o seu bebê de respirar. Alguns retalhos esgarçavam e os substituía por outros.
Só foi descoberta durante a madrugada, quando Fábio voltou para o quarto, esse não pensou duas vezes, resolveu o problema de seu jeito, tomando-a como louca e internando-a em um sanatório.
Toda família o apoiou incondicionalmente, afinal que mãe era aquela, que sufocara a filha com o seio? Pobre homem, tão distinto, tão bonito, tão desejável, se casar com uma louca, uma desequilibrada mental? E encontrar a pequena filha morta, sufocada pela própria mãe, quanta dor!
Em uma de suas visitas, Fábio finalmente confessou ter aplicado-lhe um calmante forte, naquela noite e que não supunha que ela conseguisse se levantar. Fugir daquele sanatório foi umas das fagulhas de sanidade que ainda lhe sobraram, só parou de sentir pena de si depois da confissão de Fábio, estava livre dele, mas não de si mesma, das culpas das neuroses. Quantos retalhos ainda, quantas chaves sem porta!