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domingo, 23 de abril de 2006

Os olhos centenários








Acendia um cigarro atrás do outro, sem parar de pensar nos olhos azuis daquele senhor, de alguma forma ele a perturbava. Há mais de dois anos que ela morava ali. Sempre o vira sentado naquele mesmo tamborete na porta da confeitaria. Solenemente ele a cumprimentava, todas as manhãs e todo esse tempo, ela se dava ao trabalho de responder seu cumprimento. Mas Cecília não havia reparado ainda na sua roupa, na sua elegância, parecia viver em outro século, camisa engomada, cheia de furos por conta das pequenas brasas que caiam do cachimbo, barba branca com um tom amarelado por conta do tabaco, prestou atenção também em suas botinas novas, lustrosas. Tinha um ar europeu, mas nenhum sotaque.
Diariamente ele se ocupava da arte de desfiar o fumo de corda e na hora que ela passava por ele, parecia sentir o voo de seu vestido de popelina barata e ao sopro do seu bom dia, ela respondia bom dia.
Entrou para confeitaria, pediu o de sempre, pães franceses, alguns biscoitos de nata, presunto, leite e seus cigarros. Ao sair ele estava lá ainda, compenetrado no desfiar do fumo, ao perceber-se observado ergueu o olhar, sob um chapéu de palha panamá, surpreendeu-se com o azul de seu olhar, tão azul que quase a fez chorar.
Mordeu o canto da boca, segurando o choro e o lábio inferior com o dente, apertou um dos lados do vestido, com a mão esquerda para que ele não voasse e percorreu em carreira acelerada de volta para casa.
Estava assustada, mas repleta de uma felicidade inexplicável, quase infantil. Sabia quem era aquele homem, lembrava-se perfeitamente dele. Mas como poderia passar por ali dois anos seguidos, em frente à confeitaria e não tê-lo notado?
Seu coração palpitava como se quisesse sair pela boca e segurava o peito, precisava se acalmar, respirava fundo e tentava esquecer, aquilo só podia ser mais uma de suas visões, não poderia ser real.
César logo desceria, preparava a mesa do café, enquanto seus pensamentos não saíam do homem, mas ele não poderia estar ali, lembrava de seu colo, dos carinhos que recebia quando menina, o cheiro do tabaco, tinha as mãos carinhosas e cheias de cicatrizes, a pele tão fina que dava pra ver as veias, ossos e nervos se mexendo. Recordava-se que ele a colocava sobre o muro baixo, que ficava de frente para a rua, falando das suas histórias do exército e de suas grandes batalhas. Contava dos morteiros feitos com panelas de pressão, pólvora e pregos, falava da Revolução de 32, da batalha de Sobradinho, da destruição e do incêndio de uma bela biblioteca, do seu amigo surdo que foi pedir rendição e acabou morto, das explosões, de tantos amigos mortos, da travessia de rios, dos passeios pelas trincheiras e para ela tudo parecia canção de ninar. Sim, aqueles olhos azuis mareados pediam o afago que só pequenas mãos dariam, tão pequenas que sumiam na felpuda barba branca.
Parecia Papai Noel, em sua aparência física, mas disfarçava-se bem, quando o Natal se aproximava, as crianças logo o descobriam, debaixo de seu chapéu panamá. As camisas de cambraia, os suspensórios e as calças de linho, não enganariam as crianças mais atentas. Nesses dias preferia ficar em casa, dispensava suas caminhadas matinais e jogava seu corpo sobre uma cadeira de balanço que rangia sobre o assoalho de madeira. Gostava dele, tinha um ar soberano, mas isso não a assustava, mais um cigarro.
César tomara seu chá preto, beijara-a rapidamente e saíra apressado e dessa vez não arrumou sua gravata e nem se despediu dele na porta, submersa em suas lembranças infantis, ele cheirava a tabaco, tantos diziam não ser um cheiro agradável, pra ela esse era o cheiro de sua infância. Pegou sua bolsa e saiu. Decidira ganharia o dia, passear no mercado municipal, sentir os cheiros e sabores de um tempo que não volta mais. Deu-se o direito de recordar.

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