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sexta-feira, 25 de maio de 2007

O funeral

(fotografia de Mc Beth)






O funeral

Todos muito quietos com exceção das crianças que corriam no jardim, por não entenderem a solenidade do momento. Otávio ria aquele sorriso de canto de boca que conhecia bem, começou a observá-lo depois que percebeu o cinismo em seus gestos. Tramava algo, pois estralava os dedos com aquela expressão compenetrada. Continuava um "lord inglês", dentro de um terno azul petróleo com a gravata frouxa, com o nó voltado para a esquerda, num estilo todo seu. A camisa cinza, quase prateada, cabelos despenteados, gostava o desalinho dele. Não deveria observá-lo tão despudoradamente, estava acompanhado de uma bela jovem, num vestido negro esvoaçante, presa a ele por sua sombra e num olhar devotado.
Os olhos dele pareciam em prece, atentos aos vitrais do altar principal, o que o movera de Londres até ali?
Cecília tentava um disfarce, fixava-se no pai imóvel, como que para acreditar naquilo tudo, que ele mesmo deitado no caixão como quem dorme. Feito o gigante da fábula que ouvia quando menina, o que os elfos e as fadas acreditavam estar morto e na verdade estava apenas adormecido, será que finalmente estava livre dele?
Colocaram Edmond num terno antigo, os punhos da camisa ficavam pra fora das mangas do casaco e a barriga saliente ressaltava sobre os botões. Para que colocar um terno velho nele? Tinha tantos novos, assemelhava-se a uma caricatura do que fora durante toda sua vida. Um homem alinhado, bem vestido, sapatos cintilando, perfumado e barba serrada.
Seus olhos eram tão grandes, que mesmo fechados podiam ver os globos oculares. Dormia assim com os olhos meio abertos, não era nada agradável de ver. Temia que a qualquer momento ele se levantasse e debulhasse sua ira sobre todas aquelas pessoas.
A missa foi bonita, mas parecia que não havia ninguém ali, com exceção da moça na segunda fileira, que chorava baixinho e hora ou outra suspirava, inconformada, nem a viúva chorara daquela maneira quase desesperada. Às vezes olhava para Otávio e a moça a seu lado passava um lenço sobre sua testa, fazia muito calor, não soprava nenhuma brisa, e Cecília desviava o olhar, quando ele se mexia, não queria causar constrangimentos.
Voltava os olhos para o pai, tinha apenas uma lembrança boa dele, no dia que saiu de casa para completar seus estudos em Londres, ouviu dele algumas palavras amigas e ganhou um beijo na testa, carinhos dele eram raros, talvez por isso se lembrasse sem parar daquele beijo. Não entendia apenas a ausência de César ali, ele sabia o quanto precisaria dele, mas não apareceu não dividia o mesmo espaço com Edmond, isso era fato, mas já estava morto o infeliz, queria sua mão ali, para ampará-la.
A capela do mausoléu cheia, ela acompanhada de sua enxaqueca e parecia que os sons ecoavam, badalavam em sua mente. Depois da missa de corpo presente os amigos e parentes resolveram se compadecer do morto e descrever pequenos acontecimentos que mostrassem sua bondade, seu espírito caridoso, sua benevolência.
Edmond não era um homem bom, definitivamente não. O irmão fez um discurso lindo, dizendo que Edmond era um homem incapaz de ferir alguém, teria se esquecido que o morto quebrou-lhe o braço em uma de suas brigas mais violentas?
Ana, sua prima, falou de balas e doces que ele distribuía no dia de São Cosme e São Damião, tecendo comentários amorosos sobre o tio e nada mais.
Caim, o irmão caçula do defunto, relembrou o empréstimo para construir a marcenaria e sobre ser seu companheiro de boemia, bem típico dele um comentário tacanha, para o momento.
Seu pai um homem perturbado, que não tinha noção de sua força física, se lembrara bem das inúmeras bofetadas e surras homéricas que ganhara por ser tão sincera.
Tinha vontade de rir, de pegar aquela grande mão e dizer:
─ E agora, Sr. Edmond, em quem essa mão enorme irá bater agora?
Mas já havia dito tudo a ele em vida, poucos minutos antes dele falecer. Talvez por isso parecia que todos a fulminavam com os olhos, ao se aproximarem do caixão. Mas se sentia bem, aliviada até, como era bom estar livre dele. O cheiro dali era insuportável, as flores estavam murchando e o defunto parecia suar, apertava o lenço contra o rosto, tinha ânsias seguidas. Mas ele merecia cheirar mal, nenhum perfume esconderia mais a podridão dele.
Enquanto abaixou a cabeça para limpar o nariz, ouviu a voz de Otávio no microfone, o que teria a dizer sobre Edmond? Todos se voltaram para ele por saberem da inimizade dos dois.
─ Edmond não era boa pessoa e não é porque é morto que não deve-se dizer a verdade sobre ele, sei que muitos aqui se compadecem da dor dos familiares, mas o conheci de perto, a família deve estar mais aliviada do que triste – dizia ele em tom inquisidor.
Cecília suspirou, quando entendeu o tom do discurso, mas ele calou.
Poderia ter dito que sua esposa sabia o peso dessas mãos, o quanto lhe custou viver ao lado dele, um homem insensível, seus filhos também conheciam essa força! O pai de Otávio conhecia a extensão da ira dele, por ter costurado, feito curativos, enfaixado, engessado, prescrito analgésicos para curar as feridas que Edmond abriu ─ dizia para si, olhando para Cecília, o quanto foi penoso conhecer aquele homem.
Sentira a ira dele quando ajudou Cecília, depois de muitas brigas e agressões, acolhendo a mulher que amava secretamente em sua casa e no tempo que ficaram juntos foi uma pessoa mais feliz. Sentia-se vítima de Edmond e por não ter forças para lutar contra ele cedeu, por ser covarde, cedeu. Em silêncio quase melancólico, quase teatral, olhava para o chão.
Parecia reprimir o choro, o soluço agarrado na garganta, mas ele não permitia que saísse. Calou-se, não estava determinado a ir até o fim. A moça que o acompanhava veio em seu auxílio, segurou-lhe a mão e falou algo em seu ouvido e ele respondeu negativamente com a cabeça.
Fora fraco por não ter dito a Cecília sobre seu sentimento, induzido pelas palavras duras e amargas de Edmond, deixou que o envenenassem. E foi um veneno tão forte, que por anos pensara ter esquecido os seus sentimentos, mas continuavam ali, todos eles. Ainda trazia aquela menina em sua cabeça e em seu peito e aos olhos de Cecília, ele não parecia mais aquele homem forte e impetuoso, que conhecera há mais de quinze anos atrás, que a protegera tantas vezes de seu pai, estava debilitado, quase vencido.
A viúva parecia uma estátua, imóvel, calada, não derramara uma lágrima, já se vingara dele, iria ser enterrado com o terno mais antigo que tinha, provavelmente o mais desengonçado. Era uma doce vingança, sorria para a segunda viúva, a moça sentada na segunda fileira e na hora do cortejo cochichou em seu ouvido:
─ Vá na frente, você é a viúva! - mas o defunto cheirava tão mal que nem a amante quis ficar perto do caixão.
O fim dos homens ruins e bons era o mesmo, quando fecharam o caixão muitos dos presentes se sentiram aliviados, enfim estavam livres dele. As palavras de Otávio talvez soassem falsas, pois pareciam brotar dela, era o discurso que queria ter feito, mas foi hipócrita demais para fazê-lo, já estava cansada de ser a errada, a inconformada.
O cortejo seguiu silencioso, Cecília ficou para trás, não queria ver o sepultamento e de algum modo se colocara ao lado de Otávio e restaram apenas os três. A moça mais afastada e eles andando lado a lado. Por fim quebrou-se o silêncio de mais de uma década, entre os dois:
─ Vi você logo que cheguei, mas não tive coragem de encará-lo, estava acompanhado.
─ Ela é minha enfermeira, preciso de cuidados constantes. Mas não quero falar disso agora, preciso de ar fresco, me acompanharia em um passeio e deixemos os outros, só por hoje?
Seguiram pelo mausoléu de mãos dadas, o dia os esperava.

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