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domingo, 13 de setembro de 2009

A cômoda Luiz XV




















Cansada de tentar se entender viveu como se fosse livre, cedendo a todo impulso que cortava as carnes e magoava as vísceras. Não suportava a ideia de não ser livre, de não poder escolher o que podia ou não fazer. Todos a taxavam de rebelde como coisa de adolescente e escutou milhões de vezes: “é a fase da revolta!”. Já não queria tentar mais nada.
A imagem do antigo palacete não a abandonava, mas o Rio de Janeiro era longe demais, quente demais e luminoso demais. Otávio insistia em gritar em seus ouvidos, como se quisesse deixá-la surda e confusa, sustentava muitos argumentos para que não ela não debandasse do interior de Goiás para a capital fluminense.
Tudo em sua vida medíocre sobrava, não suportava mais desperdícios, era o momento de aparar arestas!
Aquela rotina de fugas passara dos limites suportáveis e enfim queria poder se olhar de frente e ver sua imagem sem as máscaras. Nunca conseguira encarar-se de frente, nua e sem explicações vazias. Juntou a meia dúzia de vestidos que salvou da fogueira da noite anterior, o rímel e o batom vermelho, dois pares de sapatos, o maço de cigarros e o pouco dinheiro. Jogou tudo na mala e saiu rumo ao Rio de Janeiro.
Tentou mais uma fuga, a última talvez, mas era impossível, a lembrança do pai ia e vinha naqueles sermões vexatórios que só serviram pra estimular mais ainda sua ambição pelo erro, supôs ter se livrado dele, aliás. Só foi ao funeral para ter a certeza que ele tinha sido mesmo enterrado, que era mesmo morto.
Mas César tomara o lugar de seu pai, disfarçou por muito tempo sua repulsa sob aqueles olhos afáveis e em silêncio a condenava. Sentia-se aliviada por estar livre deles por alguns anos, mas voltar ao cenário da guerra não seria fácil para ela.
Sim, amava Otávio, pois perdeu a conta de quantas vezes ele a salvara de seu pai, mas não a libertou de César, o maldito que escolhera para amante resistiu com méritos, minava suas forças e a destruía na maneira de olhar repreendendo. Parecia que aprendera com seu pai como tocá-la com ódio, como engolir seus pensamentos opressores e sorrir irônico como se nada estivesse acontecendo! Mas por hora aquele ciclo repetitivo fora quebrado.
Segurou a chave contra o peito e respirou fundo, subiu os dois pequenos lances de três degraus e abriu a porta.
Tudo encoberto por lençóis e uma camada densa de poeira, mas exatamente como fora deixado há mais de oito anos, o certo é que ninguém fora ali até então.
As respostas poderiam estar naquele lugar, debaixo daqueles lençóis e ela disposta a encontrá-las. Ao mesmo tempo temia o que a esperava, aquele casarão era sua caixa de Pandora, depois que girou a chave a porta aberta, ela à mercê dos monstros que a atormentaram por toda sua vida, poderia vencê-los?
Cecília deparou-se com sua cômoda Luiz XV, com suas cinco gavetas, intactas, tal qual quando a ganhou quando fez treze anos.
As gavetas do móvel denunciariam o ciclo de sua condição primária, o caos. Soube desde menina que não era como as outras, bem que tentou se adaptar, mas também descobriu muito cedo como era agradável descobrir-se fora de compartimentos organizados.
Não conhecia Schopenhauer e já não dava valor aos melhor: bons colégios, nem aos bons professores ou aos bons modos. Doou-se sempre à condição de ser contraditória. Coordenava bem seus movimentos, mas não tão bem as palavras quando estava cheia de dúvidas e de ódio. Por isso fugia da realidade, as drogas, a embriaguez, qualquer coisa que a livrasse de confusões existenciais e mesmo assim foi considerada a louca, a desajustada.
Julgou engraçado observar os outros e constatar a ignorância impressa em cada gesto de punição ou de tentativas de controle e ajuste que tomavam em relação ao seu comportamento estranho. Todas as suas tragédias pessoais encontravam-se intimamente ligadas à incompreensão alheia , mas ela não admitia isso.
Na visão de Cecília as pessoas idolatravam a propriedade, queriam ter, comandar, conduzir a vida e as escolhas dos outros, baseadas apenas em suas experiências e peculiares subjetividades.
Em contraponto preferiu ser, abriu mão de tudo que teve e saiu pelo mundo, errante. E naqueles dias acreditava que não era pena que os outros tinham e sim inveja. Desejavam ter a sua coragem, abandonar tudo e de ser chamada de covarde sem sentir nenhum remorso ou culpa.
Aprendeu a rir chorando, pois era contrariar demais ser sem limites e tinha os seus próprios muros. Jogou-se contra eles com tanta força que agora se sentia espório daquilo que mais odiava. Insegura, sentia vontade de chorar quão grande a sua decepção consigo.
Era evidente a solidão que se impôs, o fardo do ser para vivenciar cada rusga de si como se fosse um desmembrar social, um investimento em suas durezas, enquanto o mundo se fingia afável. Naquele momento fitava-se sem saber-se vencedora ou derrotada, mas batalha.
Não abrira mão de sua filosofia, até ali, mas aquele era o motivo de seu afastamento, um confronto com suas verdades estáticas, perguntava-se ali, sentada no chão, de frente para o móvel, imóvel: em quantas gavetas estaria guardado o seu desatino?
Sim, aquela cômoda Luiz XV guardava na gaveta superior à esquerda, os seus desatinos, algumas meias finas velhas e suas calcinhas adolescentes. Na da direita, agora vazia, guardara todas as dores de sua carne e os diários de infância, há muito tempo queimados. Nas inferiores, de cima para baixo: na primeira os sons de todos os desesperos e dias de chuva que viveu; na segunda as crenças que perdera durante toda a vida; e na terceira a realidade, mas essa gaveta estava trancada com chave!

Um comentário:

Cesar Veneziani disse...

Quando esse livro sai?
Deliciosa leitura...