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quinta-feira, 20 de abril de 2006

Colcha de retalhos



Colcha de retalhos

Resolveu pegar toda a roupa velha e confeccionar uma colcha de retalhos, como sua avó paterna a ensinara tão bem. Camisas e calças velhas iam se transformando em pequenos quadrados de retalhos de tecidos. Assim era sua vida, uma colcha de retalhos, os fatos pareciam calças e camisas, mas na realidade eram apenas fragmentos de uma colcha de acontecimentos. Estava cansada de fugir de si mesma e de seus monstros internos, tinha todas as chaves, talvez encontrasse algumas portas.
Otávio era um homem bom, por isso ainda insistia em viver com ele todo aquele tempo. Nem um pouco parecido com Fábio, o boníssimo e respeitado: Dr. Fábio Ontero, médico, um dos mais conceituados em cirurgia plástica da região, que a tratava como uma boneca de louça aos olhos alheios, mas tinha várias amantes e uma vida dupla. Não queria relembrar daquele crápula infame, aquele sim sabia onde golpear.
Escolhia os retalhos mais coloridos para costurar.
A imagem dele com a filha de Carmen era inesquecível, as descobertas sobre a vida secreta dele deixou marcas.
Lembrava-se da morte trágica de sua filha, do quanto ele era culpado por tudo aquilo e as lágrimas molhavam os retalhos avulsos.
Naquela noite havia convidados, a casa estava cheia e bem que César tentou alertá-la sobre casar-se com alguém que mal conhecia.
Fábio fazia questão daquelas festas, dizia que davam um brilho especial à vida, sem dizer que receber elogios era muito bom.
Cecília tinha como passatempo predileto, enquanto fora casada com ele, promover festas e eventos beneficentes. Depois que concebera Amanda as festas cessaram. Na primeira festa depois do nascimento de sua filha estava muito satisfeita, pois os donativos dariam para abastecer o orfanato por mais de um mês.
As taças estavam cheias do melhor champanhe, música agradável, ambiente amistoso, tudo maravilhoso, no padrão de todas que ela promovia. E na manhã seguinte estaria no topo de todas as colunas sociais, sabia que era invejada e aquele sentimento de êxtase, por hora, acalentava os seus males. Gostava também de se sentir útil, mas os peitos pediam a filha, procurou por Fábio, para que ficasse de olho no andamento do Buffet, mas não encontrou. Avisou então para a governanta que iria se ausentar e que se sentissem sua falta, para que pedisse desculpas e contasse que ela foi alimentar a filha. Lembrava-se costurando retalho a retalho.
Subiu os dois lances de escada em silêncio, tentando enxugar os seios molhados, teria que trocar a blusa, agora toda molhada de leite, quando levanta os olhos depara-se com a cena, Fábio e a filha caçula de Carmen, uma menina de doze anos, não acreditava em seus olhos, aquilo não poderia estar acontecendo, não agora, não ali.
Perdeu o controle e começou a gritar compulsivamente. Apavorado, Fábio a golpeou, ela escorregou desmaiada por um dos lances da escada, enquanto a menina ajeitava o vestido, ele ordenou, “vá para o banheiro e só saia de lá quando eu mandar!”
Aplicou em Cecília um calmante forte e a levou para o quarto. Supôs que ela fosse dormir a noite toda e desceu com a menina pela escada auxiliar, que dava para os fundos da casa, continuando com a fornicação, enquanto não dessem por falta deles.
Mas com o bebê chorando, Cecília se levantou e colocou o peito em sua boca e adormeceu depois que a filha silenciou. A criança tentava vencer o seio pesado, mas era inútil, estava fadada àquela morte cruel. Como estava dopada, não percebeu que sufocara a criança com o próprio seio, impedindo o seu bebê de respirar. Alguns retalhos esgarçavam e os substituía por outros.
Só foi descoberta durante a madrugada, quando Fábio voltou para o quarto, esse não pensou duas vezes, resolveu o problema de seu jeito, tomando-a como louca e internando-a em um sanatório.
Toda família o apoiou incondicionalmente, afinal que mãe era aquela, que sufocara a filha com o seio? Pobre homem, tão distinto, tão bonito, tão desejável, se casar com uma louca, uma desequilibrada mental? E encontrar a pequena filha morta, sufocada pela própria mãe, quanta dor!
Em uma de suas visitas, Fábio finalmente confessou ter aplicado-lhe um calmante forte, naquela noite e que não supunha que ela conseguisse se levantar. Fugir daquele sanatório foi umas das fagulhas de sanidade que ainda lhe sobraram, só parou de sentir pena de si depois da confissão de Fábio, estava livre dele, mas não de si mesma, das culpas das neuroses. Quantos retalhos ainda, quantas chaves sem porta!

3 comentários:

Maria Júlia Pontes disse...

Lindíssimo!
me emocionei.

Ge Dias disse...

história muito interessante que mostra o machismo da sociedade: a culpa sempre é da mulher.

Miguel Jacó disse...

Boa noite Larissa aqui você posta textos muito mais longos do que os que tens postado no RL, se bem que na minha avaliação lá devemos colocar textos menores mesmo pois os leitores geralmente dispõe de pouco tempo para leitura.

Um grande abraço.

MJ.