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sábado, 22 de abril de 2006

Em casa




Preparava o chá preto, como fazia todas as manhãs, César gostava de tomá-lo sempre correndo, enquanto ela ajeitava sua gravata. Todo dia a mesma coisa, já se acostumara com aquela rotina. Mas quando ele saía e ela fechava a porta, parecia receber um soco no estômago, daqueles que fazem perder as forças. Ali agachada, como se atingida por um golpe, perguntava-se os motivos de ser tão fraca.
Seu passado a perseguia, as alucinações pareciam cada vez mais fortes, passos pareciam estalar no andar de cima, nada que fizesse os calaria. Tremores, suores, delírios, tudo aquilo deveria ser parte de um tempo distante, que abandonara há anos, mas a realidade diária era o medo de ser descoberta e que mais uma vez voltasse para a clausura, para o esquecimento de si.
César estava desconfiado de seu comportamento, já se perguntara milhões de vezes sobre seus pesadelos, pavores inexplicáveis e essa fobia por pequenos barulhos e até pressentia algumas vezes suas alucinações.
Encheu a xícara, a mão estava trêmula, o bule parecia ter vida e tremelicava, acrescentou muito açúcar para a quantidade de chá e o tomou apressada e arfante, com o olhar voltado para cima, como que no desespero que o caminhante descesse ao seu encontro. Apertou os olhos, como de costume, para fugir de suas visões e logo os passos e o pavor cessaram.
Descalçou os chinelos e amarrou os cabelos, para começar a arrumação da casa, ergueu-se em um solavanco e caiu no chão, como se atingida mortalmente, viu-se sendo arrastada pelos cabelos, amordaçada, com membros ensangüentados, como que se estivesse sido esquartejada, olhava para cima, na tentativa de reconhecer seu agressor, mas o rosto estava oculto pelas sombras. Tentava lutar, mas era impossível, era mais forte que ela.
Viu de relance, sentada na cadeira da sala, uma mulher jovem, que acalentava um bebê, cantava uma cantiga, em um dialeto estranho, enquanto dava o peito, num claro sufocar da criança, encarava Cecília, seus olhos eram chamas avermelhadas.
Sacudiu a cabeça e mais uma vez, sentiu-se golpeada. Os olhos fixos, negros, quase angelicais, e aquela mão de dedos finos, quase femininos, era aquela mão que a arrastava há anos, mas não conseguia ver mais que isso, desmaiou.
Despertou no chão da sala, havia batido com a cabeça em algum móvel e estava sangrando, aquilo sim, lhe traria problemas, teria que explicar ao seu marido um tombo, um tapete, um desmaio talvez.
Tirou a camisola manchada, subiu as escadas e começou a preparar o banho, teria que ir ao médico, pois o corte era profundo. Encheu a banheira com água morna, quase quente, mergulhou e por um instante viu-se deitada, naquela água transparente e limpa, como era bom se sentir em casa.
Só decidiu sair da banheira depois que a água esfriou, quando abriu os olhos, César a observava, quieto, imóvel, parecendo não entender nada. Justificou-se a Cecília dizendo ter esquecidos seu pager e por isso voltara para casa, mas a observava há alguns dias e sabia que ela não estava bem.
Não sabia se ainda confiava nele, podia estar ali apenas conspirando contar ela, mas se quisesse machucá-la já teria tido outras chances.
Cecília se levantou da banheira e ele gentilmente a apoiou para sair, ficou ali, atento, olhando-a pelo espelho. Tentou até esboçar um sorriso, mas parecia exausta, vestiu-se e adormeceu no trajeto, até o hospital.
Sentia as sombras dos postes que impediam os raios de sol, de tempos em tempos e mesmo com os olhos fechados, tinha a sensação de estar dentro da película de um filme, um sono quadro a quadro, até despertar com o barulho da porta do carro se abrindo.




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