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sexta-feira, 21 de abril de 2006

Fuga






Depois que golpeou Amadeus, sentiu pena, remorso, culpa. Foi o único que a compreendeu naquele lugar, apenas ele estendeu-lhe a mão com carinho, talvez até se amassem. Cecília nutrira bons sentimentos por ele, mas isso não a impediria de fugir, queria sentir-se solta, longe dali, injetou-lhe todo o conteúdo da seringa, que estava pré-destinada à ela.
Não sabia distinguir seus próprios sentimentos, como interpretar os alheios?
Deu-lhe um beijo aos prantos, sentiria sua falta, acariciou sua face e deixou-se recostar em seu peito pela última vez. Espiou o corredor, tudo estava vazio e silencioso, pelo adiantado da hora as pessoas provavelmente estavam dormindo.
Assustava-se com cada sombra, com cada mínimo barulho que ouvia, foi assim até alcançar o banheiro feminino. A luz era forte e branca, feriam os olhos noturnos e assombrados, quando se acostumou com a claridade, olhou-se no espelho, no que se transformara? Não podia crer que era ela refletida ali, um animal acuado, com medo da própria sombra, olhos esbugalhados, respiração rápida e inconstante.
Tinha que ficar calma, encheu os pulmões de ar, como se aquilo ajudasse, de algum modo, apertou sua mão direita sobre o peito, num acalanto de si e começou a revirar os armários e em um deles encontrou um uniforme de enfermeira, vestiu-se, penteou-se, olhou-se mais uma vez para se certificar que estava bem disfarçada, não pretendia ser notada e saiu descalça pelos corredores por não encontrara nenhum sapato.
Mas quem olharia para os seus pés agora, todos dormiam. Ao encontrar a última porta, o vigia levantou a cabeça se despedindo, “boa noite, Marie!” Ela respondeu com um breve cumprimento, sem encarar o homem e saiu.
Olhou para a vastidão escura que a esperava, não havia lua naquela noite, as estrelas cintilavam plenas, como se soubessem que ela estava solta e as luzes amareladas dos postes não abriam tanta claridade quanto ela precisava. Um calafrio percorreu-lhe a espinha, estava livre, mas para onde ir?
Quase sentiu saudade da clausura, do barulho de suas abelhas, da beleza de seu jardim, dos carinhos de Amadeus.
Sentiu em seu íntimo que a liberdade utópica era menos complicada que a verdadeira. Não queria pensar em nada, queria seus pensamentos livres como ela, soltos, descalços, sem direção, sem regras. Respirou fundo e correu o quanto suas pernas permitiram.
Depois de uma caminhada frenética, encontrou um banco de praça e se sentou, os pés tinham bolhas, alguns pedregulhos estavam presos entre a pele, enquanto arrancava-os sem o mínimo cuidado, os ferimentos sangravam, o seu corpo pedia para se deitar, mas na cabeça uma voz alertava-a, se parasse agora seria capturada e levada de volta, e isso não queria.
O dia já estava amanhecendo, logo perceberiam sua fuga. Olhou em sua volta, só havia um bêbado deitado na sarjeta, cantarolava algo, mas ela não distinguia o que, ali sentada, observou em uma vitrine sapatos carmim, lindos, flamejantes. Uma pedra e os sapatos estavam em seus pés, mais uma vez fugia. E o bêbado gritava, “agora ela tem sapatos vermelhos, a enfermeira tem sapatos vermelhos!”
Sentia fome, sede, medo. Depois de ter andado muito e o dia estar claro, avistou uma pequena cafeteria, entrou, sentou-se. A atendente veio e ela pediu apenas um copo d'água. A moça com uma saia curta e olhos gentis, logo trouxe a água. Cecília bebeu de uma só vez e levou as mãos ao bolso, dissimulando o esquecimento do dinheiro. “A água é por conta da casa”, disse a atendente, comentou que não parecia bem, se precisava de ajuda, Cecília perguntou onde ficava o banheiro.
Viu-se no espelho assim que entrou e sua aparência estava péssima, ligou a torneira e passou água pelo rosto, pescoço, e ajeitou os cabelos mais uma vez. Os olhos estavam apáticos, seu pavor era tanto que seu coração ecoava dentro de seus ouvidos. Revirava o pescoço, com vigor e passava a mão pela nuca, tentando relaxar um pouco.
“Precisa de ajuda?”, perguntou uma senhora bem idosa, com vestido colorido, com muita maquiagem nos olhos, cabelos que de tão acinzentados pareciam azuis e uma voz compadecida e carinhosa, insistia, “se precisar de alguma coisa é só pedir!”
Acenou que não, com a cabeça e a senhora completou, “deve ter sido uma noite difícil!”. Cecília em silêncio respondeu: "não imagina o quanto!" e sorriu.
Olhando-se no espelho e sua imagem invertida faz uma pergunta perturbadora: "fugira de si mesma, todo esse tempo?"

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