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domingo, 13 de setembro de 2009

A cômoda Luiz XV




















Cansada de tentar se entender viveu como se fosse livre, cedendo a todo impulso que cortava as carnes e magoava as vísceras. Não suportava a ideia de não ser livre, de não poder escolher o que podia ou não fazer. Todos a taxavam de rebelde como coisa de adolescente e escutou milhões de vezes: “é a fase da revolta!”. Já não queria tentar mais nada.
A imagem do antigo palacete não a abandonava, mas o Rio de Janeiro era longe demais, quente demais e luminoso demais. Otávio insistia em gritar em seus ouvidos, como se quisesse deixá-la surda e confusa, sustentava muitos argumentos para que não ela não debandasse do interior de Goiás para a capital fluminense.
Tudo em sua vida medíocre sobrava, não suportava mais desperdícios, era o momento de aparar arestas!
Aquela rotina de fugas passara dos limites suportáveis e enfim queria poder se olhar de frente e ver sua imagem sem as máscaras. Nunca conseguira encarar-se de frente, nua e sem explicações vazias. Juntou a meia dúzia de vestidos que salvou da fogueira da noite anterior, o rímel e o batom vermelho, dois pares de sapatos, o maço de cigarros e o pouco dinheiro. Jogou tudo na mala e saiu rumo ao Rio de Janeiro.
Tentou mais uma fuga, a última talvez, mas era impossível, a lembrança do pai ia e vinha naqueles sermões vexatórios que só serviram pra estimular mais ainda sua ambição pelo erro, supôs ter se livrado dele, aliás. Só foi ao funeral para ter a certeza que ele tinha sido mesmo enterrado, que era mesmo morto.
Mas César tomara o lugar de seu pai, disfarçou por muito tempo sua repulsa sob aqueles olhos afáveis e em silêncio a condenava. Sentia-se aliviada por estar livre deles por alguns anos, mas voltar ao cenário da guerra não seria fácil para ela.
Sim, amava Otávio, pois perdeu a conta de quantas vezes ele a salvara de seu pai, mas não a libertou de César, o maldito que escolhera para amante resistiu com méritos, minava suas forças e a destruía na maneira de olhar repreendendo. Parecia que aprendera com seu pai como tocá-la com ódio, como engolir seus pensamentos opressores e sorrir irônico como se nada estivesse acontecendo! Mas por hora aquele ciclo repetitivo fora quebrado.
Segurou a chave contra o peito e respirou fundo, subiu os dois pequenos lances de três degraus e abriu a porta.
Tudo encoberto por lençóis e uma camada densa de poeira, mas exatamente como fora deixado há mais de oito anos, o certo é que ninguém fora ali até então.
As respostas poderiam estar naquele lugar, debaixo daqueles lençóis e ela disposta a encontrá-las. Ao mesmo tempo temia o que a esperava, aquele casarão era sua caixa de Pandora, depois que girou a chave a porta aberta, ela à mercê dos monstros que a atormentaram por toda sua vida, poderia vencê-los?
Cecília deparou-se com sua cômoda Luiz XV, com suas cinco gavetas, intactas, tal qual quando a ganhou quando fez treze anos.
As gavetas do móvel denunciariam o ciclo de sua condição primária, o caos. Soube desde menina que não era como as outras, bem que tentou se adaptar, mas também descobriu muito cedo como era agradável descobrir-se fora de compartimentos organizados.
Não conhecia Schopenhauer e já não dava valor aos melhor: bons colégios, nem aos bons professores ou aos bons modos. Doou-se sempre à condição de ser contraditória. Coordenava bem seus movimentos, mas não tão bem as palavras quando estava cheia de dúvidas e de ódio. Por isso fugia da realidade, as drogas, a embriaguez, qualquer coisa que a livrasse de confusões existenciais e mesmo assim foi considerada a louca, a desajustada.
Julgou engraçado observar os outros e constatar a ignorância impressa em cada gesto de punição ou de tentativas de controle e ajuste que tomavam em relação ao seu comportamento estranho. Todas as suas tragédias pessoais encontravam-se intimamente ligadas à incompreensão alheia , mas ela não admitia isso.
Na visão de Cecília as pessoas idolatravam a propriedade, queriam ter, comandar, conduzir a vida e as escolhas dos outros, baseadas apenas em suas experiências e peculiares subjetividades.
Em contraponto preferiu ser, abriu mão de tudo que teve e saiu pelo mundo, errante. E naqueles dias acreditava que não era pena que os outros tinham e sim inveja. Desejavam ter a sua coragem, abandonar tudo e de ser chamada de covarde sem sentir nenhum remorso ou culpa.
Aprendeu a rir chorando, pois era contrariar demais ser sem limites e tinha os seus próprios muros. Jogou-se contra eles com tanta força que agora se sentia espório daquilo que mais odiava. Insegura, sentia vontade de chorar quão grande a sua decepção consigo.
Era evidente a solidão que se impôs, o fardo do ser para vivenciar cada rusga de si como se fosse um desmembrar social, um investimento em suas durezas, enquanto o mundo se fingia afável. Naquele momento fitava-se sem saber-se vencedora ou derrotada, mas batalha.
Não abrira mão de sua filosofia, até ali, mas aquele era o motivo de seu afastamento, um confronto com suas verdades estáticas, perguntava-se ali, sentada no chão, de frente para o móvel, imóvel: em quantas gavetas estaria guardado o seu desatino?
Sim, aquela cômoda Luiz XV guardava na gaveta superior à esquerda, os seus desatinos, algumas meias finas velhas e suas calcinhas adolescentes. Na da direita, agora vazia, guardara todas as dores de sua carne e os diários de infância, há muito tempo queimados. Nas inferiores, de cima para baixo: na primeira os sons de todos os desesperos e dias de chuva que viveu; na segunda as crenças que perdera durante toda a vida; e na terceira a realidade, mas essa gaveta estava trancada com chave!

quarta-feira, 12 de dezembro de 2007

Café com biscoitos





Pressionando as mãos sobre os olhos e teria que encarar mais um dia invadindo a sala, o quarto. O som das crianças brincando lá fora a irritava, estava com azia e sem abrir os olhos procurava o despertador para calar aquela campainha maldita.
Esfregou o rosto sobre o travesseiro e finalmente abriu os olhos, as sombras pareciam dançar e as crianças lá fora ainda gritavam. O espelho em frente ao canto da cama exaltava seus olhos imperfeitos abrigando as pálpebras caídas, quase desistentes - via semelhanças com os olhos de César, ainda menino e ao lembrar dele esboçava um sorriso que logo desapareceria.
Lá estava ela, depois de mais uma noite que não se lembrava de nada, o que seria dessa vez? Pílulas? Láudano? Vinho? Que impulso era aquele que a levava incansável rumo ao fim.
Precisava apenas de seus cigarros e uma boa xícara de café, o que a matava aos poucos era a sua feição humanóide, onde se estampava toda a previsibilidade de suas ações. Vestia um peignoir azul celeste que combinava perfeitamente com a manhã, que insistia em entrar pelas portas de vidro, as cortinas quietas davam o tom da quentura que tomava o quarto àquela hora, não havia brisa.
Seus pés brancos, unhas pintadas de carmim, descalços, não lembravam em nada os pés sujos de lama, os mesmos da fuga, que sangravam com brita do asfalto encarnada nas solas. E estavam agora lisos, alvos e limpos como pezinhos de princesa.
Mas sentia-se ainda naquela praça, com os pés machucados, confinados em sapatos vermelhos, que roubara duas quadras antes dali. Talvez não se percebesse como um personagem dum conto de fadas, em busca de uma estrada amarela, por onde caminharia e alcançaria seu verdadeiro lar.
Será que algum dia sentir-se-ia em casa?
Todos os dias a sensação de que na noite anterior havia feito algo horrível, imperdoável. Desistira de ser aquela que deflagrara fugas alucinadas e restava-lhe a falta de vontade de prosseguir, o ostracismo se encarregando de devolvê-la para a cama.
Não gostava de pensar em suas vítimas, em quantas pessoas arruinou até estar ali, envolvida em seus lençóis de cetim e em sua camisola de seda, à espera do café da manhã.
As paredes de tão brancas ficavam amareladas pela força do sol que invadia o quarto e a acordava, acompanhada da impressão de que estava no lugar errado, mas não poderia contar isso a ninguém. As outras pessoas não a consideravam uma estrangeira.
─ Senhora, posso entrar? – chamava uma voz feminina doutro lado, enquanto batia à porta.
─ Sim, claro, entre! – respondeu Cecília ainda atordoada.
─ Senhora, café, biscoitos, pão, torradas, melão, suco de laranja e requeijão! Bom apetite! – dizia gentil, enquanto ajeitava os travesseiros, para Cecília se recostar,
─ Obrigada, querida! – disse se acomodando entre os travesseiros
─ Se terminar antes que eu volte só toque este sino para que venha ajudá-la! Prazer em servi-la, senhora! – disse a moça saindo do quarto.
Como comer alguma coisa? Seu estomago revirava-se, mas não se lembrava de sua última refeição decente. Como recusar, estava tudo tão bem preparado naquela bandeja?
A porcelana estava reluzente, o café muito bom, pedia um cigarro. Quando criança adorava molhar o pão no café, embora sua mãe ralhasse e dissesse não ser higiênico, qual o problema em molhar o pão no café? Não era higiênico pensar que tudo se misturaria no estômago, virando uma só pasta e depois excremento!
Como estavam bons os biscoitos deliciosamente preparados que pareciam de mentira, recobertos com uma fina camada de cream cheese e geléia de goiaba e com o gosto do café era algo indescritível, o doce e o amargo, mesclados com o frugal, tocavam um momento encoberto pelo tempo.
Será que aquela moça tão delicada teria preparado seu café com carinho, ou feito como todos os dias? Teria a noção de que ela e Cecília eram feitas da mesma matéria? E que aqueles sabores traziam à boca uma lembrança quase perdida e fizeram Cecília chorar?

segunda-feira, 2 de julho de 2007

Recanto

Acordou com uma dor de cabeça terrível, parecia que pesava toneladas e que se afundava no colchão, os lençóis macios e cheiravam bem, negava-se a abrir os olhos, pois a luz incomodava, mas ouvia o barulho de ondas e de pássaros, não se lembrava de estar perto do mar. Poderia ser um sonho ainda, apertou os olhos, mas o som parecia ecoar em sua cabeça, repetidamente.
César a olhava da poltrona, que estava próxima da janela, não conseguia vê-lo direito, por causa da claridade que vinha de fora e invadia o aposento, mas era ele e podia senti-lo invadindo seus sentimentos mais secretos. A luz intensa feria os olhos e os pensamentos, tentou cobrir o rosto com uma das mãos.
O ventilador girava lento, como sua cabeça, estava atordoada.
─ Enfim, de volta a vida, minha querida. Sente-se bem? Quer que eu ajeite seu travesseiro, que peça seu café? - perguntou enquanto se levantava com uma feição dissimulada.
─ Não precisa, estou sem fome, sente aqui, estava com saudades de você, quero seu colo!
Ele sentou-se no canto da cama e ela recostou-se entre suas pernas, enquanto recebia um afago nos cabelos.
Quando ficava assim, sentia-se uma menina, ele era sua referência e mesmo quando não estava presente, tinha o poder de acalentar ou potencializar seus medos. Era o único homem que tinha contato íntimo verdadeiro. Um entendimento mútuo pairava sobre os dois, algo intocável, imaculado, quase mórbido.
Os pensamentos de Cecília estavam confusos, iam e vinham como as ondas e só queria ficar ali, congelar aquele momento de quietude que abrandava suas dores, suas insatisfações. Mas sabia que em algum momento teria que enfrentar de novo a realidade e isso deixava Cecília ansiosa e infeliz, melhor seria aproveitar a calmaria do momento.
─ Quer um cigarro? - ergueu o braço e alcançou o isqueiro e os cigarros no criado mudo.
Acendeu o cigarro e entregou a ela, gentil, com aquele jeito de menino, como se o tempo tivesse voltado, era mais amável e enquanto havia amor não ouvira dele uma palavra aguda ou uma repreensão por seu comportamento descontrolado e impulsivo.
Mas as coisas mudam quando nos tornamos um fardo.
Cada trago aquecia seu peito, enquanto as mãos cuidadosas dele ainda a afagavam e ela não queria que acabasse, nem que o verdadeiro César voltasse.
As ondas por certo contariam segredos e ela não passaria impune por aquele momento. A fumaça bailava branca, como uma daquelas cortinas de seda fina, ao sabor do vento.
Sentia a respiração dele, sentia o desejo que despertava, mas preferia ficar quieta.
Pela porta de vidro olhava o mar, as ondas iam e vinham, revirando a areia da praia.
─ Porque estou aqui? - perguntou quase em um sussurro e ele não respondeu.
A fumaça descortinava-se em seus olhos e por alguns instantes tirou-a dali.
Então se lembrou das brincadeiras no lago, dos banhos que tomavam juntos quando criança, da primeira vez que sentiu vergonha de sua nudez e da maneira que ele a abraçou sem nada dizer, mesmo que soubessem que a vergonha era recíproca. Depois desse banho sempre esteve nua diante dele.
Lembrou da casa do sítio, da muralha de pedra que cercava a sede, dos animais pastando naquela imensidão verde e da guerra de estrume que faziam e gargalhou.
─ O que foi? - perguntou César.
─ Apenas me lembrava da casa do sítio, das guerras de estrume.
─ Sim, e a Boneca, passávamos horas cavalgando...
─ Mas quando voltava para casa eu levava bons cascudos, por deixar a pobre tão cansada.
Entregaram-se ao som do mar mais uma vez. O som compassado trouxe muitas recordações, quase alucinações de seu passado.
Viu o pai abrindo os olhos e sorrindo, dentro do caixão, a filha morta por baixo de seu seio, viu-se sendo arrastada para o sanatório, os abusos que sofrera lá, a fuga, os pés em carne viva.
Um vento frio percorreu sua espinha tomando seus olhos e como nas tardes de tempestades, nas noites úmidas e escuras no sítio, ela se escondeu como uma menina assustada, por entre as pernas de César.
─ Minha querida, está se sentindo bem?
─ Não, não estou bem, mas fique aqui comigo assim, só mais um instante!

quarta-feira, 6 de junho de 2007

O vestido





O vestido

Odiava esperar as coisas acontecerem, mas talvez por um momento, pudesse se permitir ser levada pela força do vento, esvaziar seus pensamentos e deixar-se como folha avulsa que se solta, em idas e vindas lascivas.
Atordoada, não sabia se pela espera ou se pelo número de pílulas que tomara, Cecília entregava-se ao vento e como seu vestido de seda púrpura ela ondulava quase dançava. Aquela leveza tomava sua pele clara, sem a devida noção do tempo não distinguia dia ou noite, se aquilo era real ou se mais uma de suas visões.
Lembrou-se de César por um momento, parecia que nunca vivera sem ele, a impressão mais forte que tinha era que ele era uma constante em sua vida, mas com a mudança de vento, seus pensamentos mudaram de rumo.
Ateve-se ao vestido, olhava a disposição de suas saias e suas dobras, adorava aquele vestido, tinha vontade de dançar e sorrir. Em movimento de rotação, rodava sozinha e ria de si, quase que embriagada de nada. De tanto girar, sentiu vertigens e parou num movimento brusco. Ainda observando as dobras do vestido, como se a vida fosse só aquele pedaço de pano e tivesse dobras como suas saias. Como descobrir onde começa uma coisa e termina a outra? Haveria uma linha intermediária entre o contemplativo e o ativo? Olhar as saias a agradava, mas rodar para fazê-las se movimentar era infinitamente melhor! Sentia-se tonta, mas realizada, leve como uma pluma!
Apetecia-lhe vislumbrar as coisas, mas das esperas nunca gostou, eram angustiantes, quase entediantes.
Ouvia das pessoas a mesma reclamação, que era inconseqüente, impaciente, que se precipitava ao primeiro sinal de perigo, que feria para não ser ferida, fugia, para não se sentir pressionada. E quem não age assim, se perguntava.
Mas seria ela a única dona de seu destino? Será que tudo que lhe acontecera até ali teria sido apenas por suas escolhas mal feitas, ou por hora ter se tornado prisioneira de uma liberdade ilusória?
Finalmente estava no estágio que pretendia alcançar, a dormência, a gentil sensação flutuante de estar livre de qualquer amarra, tudo parecia ocorrer em seu ritmo próprio, o vento ganhava voz e sorrisos.
Seu vestido era roupa para seu corpo, para o vento não passava de um tecido, um obstáculo que teria que transpor para chegar ao seu destino final. As dobras eram transitórias, ao menor movimento do vento ou de Cecília se desfaziam por completo, sem marcas, sem rusgas.
Quem dera fosse livre como o vento, dona de seu destino, quem dera soubesse fazer as escolhas certas, quem dera não ter que escolher. Tudo parecia confuso e claro, não havia liberdade, apenas um simulacro dela. Mas por hora, estava feliz com seu vestido.
Por um momento pensou ouvir a voz de Otávio, seu corpo desabou, sentiu suas mãos suando e um desconforto vertiginoso. A voz perguntava:
─ Para que faz isso, Cecília? Quantas pílulas dessa vez? Não sei mais como posso te ajudar!
Ela só tinha vontade de rir, mas estava fraca demais para isso. Sentia raiva dele agora, queria ser esquecida naquele estágio, será que nunca a deixaria em paz?

sexta-feira, 25 de maio de 2007

O funeral

(fotografia de Mc Beth)






O funeral

Todos muito quietos com exceção das crianças que corriam no jardim, por não entenderem a solenidade do momento. Otávio ria aquele sorriso de canto de boca que conhecia bem, começou a observá-lo depois que percebeu o cinismo em seus gestos. Tramava algo, pois estralava os dedos com aquela expressão compenetrada. Continuava um "lord inglês", dentro de um terno azul petróleo com a gravata frouxa, com o nó voltado para a esquerda, num estilo todo seu. A camisa cinza, quase prateada, cabelos despenteados, gostava o desalinho dele. Não deveria observá-lo tão despudoradamente, estava acompanhado de uma bela jovem, num vestido negro esvoaçante, presa a ele por sua sombra e num olhar devotado.
Os olhos dele pareciam em prece, atentos aos vitrais do altar principal, o que o movera de Londres até ali?
Cecília tentava um disfarce, fixava-se no pai imóvel, como que para acreditar naquilo tudo, que ele mesmo deitado no caixão como quem dorme. Feito o gigante da fábula que ouvia quando menina, o que os elfos e as fadas acreditavam estar morto e na verdade estava apenas adormecido, será que finalmente estava livre dele?
Colocaram Edmond num terno antigo, os punhos da camisa ficavam pra fora das mangas do casaco e a barriga saliente ressaltava sobre os botões. Para que colocar um terno velho nele? Tinha tantos novos, assemelhava-se a uma caricatura do que fora durante toda sua vida. Um homem alinhado, bem vestido, sapatos cintilando, perfumado e barba serrada.
Seus olhos eram tão grandes, que mesmo fechados podiam ver os globos oculares. Dormia assim com os olhos meio abertos, não era nada agradável de ver. Temia que a qualquer momento ele se levantasse e debulhasse sua ira sobre todas aquelas pessoas.
A missa foi bonita, mas parecia que não havia ninguém ali, com exceção da moça na segunda fileira, que chorava baixinho e hora ou outra suspirava, inconformada, nem a viúva chorara daquela maneira quase desesperada. Às vezes olhava para Otávio e a moça a seu lado passava um lenço sobre sua testa, fazia muito calor, não soprava nenhuma brisa, e Cecília desviava o olhar, quando ele se mexia, não queria causar constrangimentos.
Voltava os olhos para o pai, tinha apenas uma lembrança boa dele, no dia que saiu de casa para completar seus estudos em Londres, ouviu dele algumas palavras amigas e ganhou um beijo na testa, carinhos dele eram raros, talvez por isso se lembrasse sem parar daquele beijo. Não entendia apenas a ausência de César ali, ele sabia o quanto precisaria dele, mas não apareceu não dividia o mesmo espaço com Edmond, isso era fato, mas já estava morto o infeliz, queria sua mão ali, para ampará-la.
A capela do mausoléu cheia, ela acompanhada de sua enxaqueca e parecia que os sons ecoavam, badalavam em sua mente. Depois da missa de corpo presente os amigos e parentes resolveram se compadecer do morto e descrever pequenos acontecimentos que mostrassem sua bondade, seu espírito caridoso, sua benevolência.
Edmond não era um homem bom, definitivamente não. O irmão fez um discurso lindo, dizendo que Edmond era um homem incapaz de ferir alguém, teria se esquecido que o morto quebrou-lhe o braço em uma de suas brigas mais violentas?
Ana, sua prima, falou de balas e doces que ele distribuía no dia de São Cosme e São Damião, tecendo comentários amorosos sobre o tio e nada mais.
Caim, o irmão caçula do defunto, relembrou o empréstimo para construir a marcenaria e sobre ser seu companheiro de boemia, bem típico dele um comentário tacanha, para o momento.
Seu pai um homem perturbado, que não tinha noção de sua força física, se lembrara bem das inúmeras bofetadas e surras homéricas que ganhara por ser tão sincera.
Tinha vontade de rir, de pegar aquela grande mão e dizer:
─ E agora, Sr. Edmond, em quem essa mão enorme irá bater agora?
Mas já havia dito tudo a ele em vida, poucos minutos antes dele falecer. Talvez por isso parecia que todos a fulminavam com os olhos, ao se aproximarem do caixão. Mas se sentia bem, aliviada até, como era bom estar livre dele. O cheiro dali era insuportável, as flores estavam murchando e o defunto parecia suar, apertava o lenço contra o rosto, tinha ânsias seguidas. Mas ele merecia cheirar mal, nenhum perfume esconderia mais a podridão dele.
Enquanto abaixou a cabeça para limpar o nariz, ouviu a voz de Otávio no microfone, o que teria a dizer sobre Edmond? Todos se voltaram para ele por saberem da inimizade dos dois.
─ Edmond não era boa pessoa e não é porque é morto que não deve-se dizer a verdade sobre ele, sei que muitos aqui se compadecem da dor dos familiares, mas o conheci de perto, a família deve estar mais aliviada do que triste – dizia ele em tom inquisidor.
Cecília suspirou, quando entendeu o tom do discurso, mas ele calou.
Poderia ter dito que sua esposa sabia o peso dessas mãos, o quanto lhe custou viver ao lado dele, um homem insensível, seus filhos também conheciam essa força! O pai de Otávio conhecia a extensão da ira dele, por ter costurado, feito curativos, enfaixado, engessado, prescrito analgésicos para curar as feridas que Edmond abriu ─ dizia para si, olhando para Cecília, o quanto foi penoso conhecer aquele homem.
Sentira a ira dele quando ajudou Cecília, depois de muitas brigas e agressões, acolhendo a mulher que amava secretamente em sua casa e no tempo que ficaram juntos foi uma pessoa mais feliz. Sentia-se vítima de Edmond e por não ter forças para lutar contra ele cedeu, por ser covarde, cedeu. Em silêncio quase melancólico, quase teatral, olhava para o chão.
Parecia reprimir o choro, o soluço agarrado na garganta, mas ele não permitia que saísse. Calou-se, não estava determinado a ir até o fim. A moça que o acompanhava veio em seu auxílio, segurou-lhe a mão e falou algo em seu ouvido e ele respondeu negativamente com a cabeça.
Fora fraco por não ter dito a Cecília sobre seu sentimento, induzido pelas palavras duras e amargas de Edmond, deixou que o envenenassem. E foi um veneno tão forte, que por anos pensara ter esquecido os seus sentimentos, mas continuavam ali, todos eles. Ainda trazia aquela menina em sua cabeça e em seu peito e aos olhos de Cecília, ele não parecia mais aquele homem forte e impetuoso, que conhecera há mais de quinze anos atrás, que a protegera tantas vezes de seu pai, estava debilitado, quase vencido.
A viúva parecia uma estátua, imóvel, calada, não derramara uma lágrima, já se vingara dele, iria ser enterrado com o terno mais antigo que tinha, provavelmente o mais desengonçado. Era uma doce vingança, sorria para a segunda viúva, a moça sentada na segunda fileira e na hora do cortejo cochichou em seu ouvido:
─ Vá na frente, você é a viúva! - mas o defunto cheirava tão mal que nem a amante quis ficar perto do caixão.
O fim dos homens ruins e bons era o mesmo, quando fecharam o caixão muitos dos presentes se sentiram aliviados, enfim estavam livres dele. As palavras de Otávio talvez soassem falsas, pois pareciam brotar dela, era o discurso que queria ter feito, mas foi hipócrita demais para fazê-lo, já estava cansada de ser a errada, a inconformada.
O cortejo seguiu silencioso, Cecília ficou para trás, não queria ver o sepultamento e de algum modo se colocara ao lado de Otávio e restaram apenas os três. A moça mais afastada e eles andando lado a lado. Por fim quebrou-se o silêncio de mais de uma década, entre os dois:
─ Vi você logo que cheguei, mas não tive coragem de encará-lo, estava acompanhado.
─ Ela é minha enfermeira, preciso de cuidados constantes. Mas não quero falar disso agora, preciso de ar fresco, me acompanharia em um passeio e deixemos os outros, só por hoje?
Seguiram pelo mausoléu de mãos dadas, o dia os esperava.

domingo, 23 de abril de 2006

A carta







Só agora reconhecia o sentimento mais íntimo que escondera até de si mesma. O que mais desejava era que Fábio não voltasse. Desejava que gostasse tanto de Milão que não quisesse mais aquela vida medíocre que levavam. Mas agora entendia que sua máscara havia caído e que declarara o fim daquela vida pacata e linear, que tinham.
César dizia-lhe num sussurro:
─ Conte a ele a verdade, conte que já não o quer mais!
Ela ria dele, como é que podia pensar que as coisas se resolveriam com uma verdade crua.
─ César, como é inocente!
Toda quinta-feira recebia um envelope, sob sua porta, cheio de rabiscos quase ilegíveis. A cada nova carta recebida maior era o descontrole e mais latente a vontade de escrever palavras que registrassem a febre que lhe tomava a alma.
Mas a última que enviara para ele, tentara ser direta, dizendo que não sentia mais a sua falta, que queria acabar com aquela espera e que seria melhor assim.
Talvez essa correspondência viesse com boas novas, contando que ele encontrou uma outra pessoa, que está realizado e que também não sente saudades dela. Por si só a carta já era diferente, sem remetente, vinha apenas com o timbre do consultório que Fábio trabalhava. Rasgou o envelope, cheia de esperanças vagas e suspirou com a possibilidade de tudo ser real.
Dessa vez a carta vinha datilografada, finalmente teria entendido que seus garranchos eram hieróglifos ilegíveis?
Pela primeira vez não iria sofrer ao decifrar seu conteúdo, nem ter que adivinhar palavras para entender o significado de cada linha.
Quando abriu, percebeu que essa era uma correspondência incomum, antes de tenta ler, percebeu que a carta estava acompanhada de uma passagem, ida e volta, com destino à Milão.
Seu coração dava pulos não queria ir a Milão, como poderia negar qualquer que fosse o pedido, fora de seu território? Sentir-se-ia acuada, encurralada nas armadilhas dele. O que estava pensando? Acreditava que tivesse sido clara com ele, não queria mais o compromisso.
Foi tomada por um ódio convertido em lágrimas, César a amparou com um gesto, e abraçou-a, trazendo seu rosto molhado de encontro ao seu ombro, não disseram nenhuma palavra, ele apenas se ateve ao movimento de acolher as dores dela.
Estava cheia de problemas que a impediriam de levar qualquer relacionamento adiante, disso ele sabia bem, compreendia-a sem nenhuma acusação breve, sem esboçar nem mesmo o que pensava. Sabia de seus defeitos, de suas insanidades, de seu egoísmo extremado.
Cecília se perguntava por que Juliano era assim, compreensivo demais, já estava farta e embora já estivessem separados há mais de um ano, sentia que ainda a tratava como a esposa amantíssima e devotada.
Era como uma prisão, mesmo de longe ele a sufocava, vigiava seus passos e para completar o quadro, sua família fazia questão de ser muito presente. Pais prestativos, perfeitos e para Cecília isso soava como provocação e não como carinho. Parecia que os parentes dele esfregavam na cara dela o tempo todo, o quanto tinham uma família perfeita, enquanto a dela não passava de elos fracassados.
Sobrava apenas a compreensão de César, que era abominado pela família de Fábio, aliás eles o ignoravam, essa era a verdade, fingiam que ele não existia, causavam um enorme desconforto, pois ele era seu amigo há anos, a ele cabia uma das poucas referências familiares que ela tinha.
Já os Nogueira eram intragáveis, insuportavelmente felizes, talvez por isso não vejam sua própria dose de hipocrisia e um dia ainda despejaria isso neles.
Por que não mandou a passagem para sua mãe, que era fascinada pela Europa?
Qual a motivação de enviar a ela um convite tão tentador?
Estava tão curiosa, que mal podia esperar para ler a carta, só agora dava-se conta que se interessara pela retórica de seu “ex-marido”.

Os olhos centenários








Acendia um cigarro atrás do outro, sem parar de pensar nos olhos azuis daquele senhor, de alguma forma ele a perturbava. Há mais de dois anos que ela morava ali. Sempre o vira sentado naquele mesmo tamborete na porta da confeitaria. Solenemente ele a cumprimentava, todas as manhãs e todo esse tempo, ela se dava ao trabalho de responder seu cumprimento. Mas Cecília não havia reparado ainda na sua roupa, na sua elegância, parecia viver em outro século, camisa engomada, cheia de furos por conta das pequenas brasas que caiam do cachimbo, barba branca com um tom amarelado por conta do tabaco, prestou atenção também em suas botinas novas, lustrosas. Tinha um ar europeu, mas nenhum sotaque.
Diariamente ele se ocupava da arte de desfiar o fumo de corda e na hora que ela passava por ele, parecia sentir o voo de seu vestido de popelina barata e ao sopro do seu bom dia, ela respondia bom dia.
Entrou para confeitaria, pediu o de sempre, pães franceses, alguns biscoitos de nata, presunto, leite e seus cigarros. Ao sair ele estava lá ainda, compenetrado no desfiar do fumo, ao perceber-se observado ergueu o olhar, sob um chapéu de palha panamá, surpreendeu-se com o azul de seu olhar, tão azul que quase a fez chorar.
Mordeu o canto da boca, segurando o choro e o lábio inferior com o dente, apertou um dos lados do vestido, com a mão esquerda para que ele não voasse e percorreu em carreira acelerada de volta para casa.
Estava assustada, mas repleta de uma felicidade inexplicável, quase infantil. Sabia quem era aquele homem, lembrava-se perfeitamente dele. Mas como poderia passar por ali dois anos seguidos, em frente à confeitaria e não tê-lo notado?
Seu coração palpitava como se quisesse sair pela boca e segurava o peito, precisava se acalmar, respirava fundo e tentava esquecer, aquilo só podia ser mais uma de suas visões, não poderia ser real.
César logo desceria, preparava a mesa do café, enquanto seus pensamentos não saíam do homem, mas ele não poderia estar ali, lembrava de seu colo, dos carinhos que recebia quando menina, o cheiro do tabaco, tinha as mãos carinhosas e cheias de cicatrizes, a pele tão fina que dava pra ver as veias, ossos e nervos se mexendo. Recordava-se que ele a colocava sobre o muro baixo, que ficava de frente para a rua, falando das suas histórias do exército e de suas grandes batalhas. Contava dos morteiros feitos com panelas de pressão, pólvora e pregos, falava da Revolução de 32, da batalha de Sobradinho, da destruição e do incêndio de uma bela biblioteca, do seu amigo surdo que foi pedir rendição e acabou morto, das explosões, de tantos amigos mortos, da travessia de rios, dos passeios pelas trincheiras e para ela tudo parecia canção de ninar. Sim, aqueles olhos azuis mareados pediam o afago que só pequenas mãos dariam, tão pequenas que sumiam na felpuda barba branca.
Parecia Papai Noel, em sua aparência física, mas disfarçava-se bem, quando o Natal se aproximava, as crianças logo o descobriam, debaixo de seu chapéu panamá. As camisas de cambraia, os suspensórios e as calças de linho, não enganariam as crianças mais atentas. Nesses dias preferia ficar em casa, dispensava suas caminhadas matinais e jogava seu corpo sobre uma cadeira de balanço que rangia sobre o assoalho de madeira. Gostava dele, tinha um ar soberano, mas isso não a assustava, mais um cigarro.
César tomara seu chá preto, beijara-a rapidamente e saíra apressado e dessa vez não arrumou sua gravata e nem se despediu dele na porta, submersa em suas lembranças infantis, ele cheirava a tabaco, tantos diziam não ser um cheiro agradável, pra ela esse era o cheiro de sua infância. Pegou sua bolsa e saiu. Decidira ganharia o dia, passear no mercado municipal, sentir os cheiros e sabores de um tempo que não volta mais. Deu-se o direito de recordar.

sábado, 22 de abril de 2006

Em casa




Preparava o chá preto, como fazia todas as manhãs, César gostava de tomá-lo sempre correndo, enquanto ela ajeitava sua gravata. Todo dia a mesma coisa, já se acostumara com aquela rotina. Mas quando ele saía e ela fechava a porta, parecia receber um soco no estômago, daqueles que fazem perder as forças. Ali agachada, como se atingida por um golpe, perguntava-se os motivos de ser tão fraca.
Seu passado a perseguia, as alucinações pareciam cada vez mais fortes, passos pareciam estalar no andar de cima, nada que fizesse os calaria. Tremores, suores, delírios, tudo aquilo deveria ser parte de um tempo distante, que abandonara há anos, mas a realidade diária era o medo de ser descoberta e que mais uma vez voltasse para a clausura, para o esquecimento de si.
César estava desconfiado de seu comportamento, já se perguntara milhões de vezes sobre seus pesadelos, pavores inexplicáveis e essa fobia por pequenos barulhos e até pressentia algumas vezes suas alucinações.
Encheu a xícara, a mão estava trêmula, o bule parecia ter vida e tremelicava, acrescentou muito açúcar para a quantidade de chá e o tomou apressada e arfante, com o olhar voltado para cima, como que no desespero que o caminhante descesse ao seu encontro. Apertou os olhos, como de costume, para fugir de suas visões e logo os passos e o pavor cessaram.
Descalçou os chinelos e amarrou os cabelos, para começar a arrumação da casa, ergueu-se em um solavanco e caiu no chão, como se atingida mortalmente, viu-se sendo arrastada pelos cabelos, amordaçada, com membros ensangüentados, como que se estivesse sido esquartejada, olhava para cima, na tentativa de reconhecer seu agressor, mas o rosto estava oculto pelas sombras. Tentava lutar, mas era impossível, era mais forte que ela.
Viu de relance, sentada na cadeira da sala, uma mulher jovem, que acalentava um bebê, cantava uma cantiga, em um dialeto estranho, enquanto dava o peito, num claro sufocar da criança, encarava Cecília, seus olhos eram chamas avermelhadas.
Sacudiu a cabeça e mais uma vez, sentiu-se golpeada. Os olhos fixos, negros, quase angelicais, e aquela mão de dedos finos, quase femininos, era aquela mão que a arrastava há anos, mas não conseguia ver mais que isso, desmaiou.
Despertou no chão da sala, havia batido com a cabeça em algum móvel e estava sangrando, aquilo sim, lhe traria problemas, teria que explicar ao seu marido um tombo, um tapete, um desmaio talvez.
Tirou a camisola manchada, subiu as escadas e começou a preparar o banho, teria que ir ao médico, pois o corte era profundo. Encheu a banheira com água morna, quase quente, mergulhou e por um instante viu-se deitada, naquela água transparente e limpa, como era bom se sentir em casa.
Só decidiu sair da banheira depois que a água esfriou, quando abriu os olhos, César a observava, quieto, imóvel, parecendo não entender nada. Justificou-se a Cecília dizendo ter esquecidos seu pager e por isso voltara para casa, mas a observava há alguns dias e sabia que ela não estava bem.
Não sabia se ainda confiava nele, podia estar ali apenas conspirando contar ela, mas se quisesse machucá-la já teria tido outras chances.
Cecília se levantou da banheira e ele gentilmente a apoiou para sair, ficou ali, atento, olhando-a pelo espelho. Tentou até esboçar um sorriso, mas parecia exausta, vestiu-se e adormeceu no trajeto, até o hospital.
Sentia as sombras dos postes que impediam os raios de sol, de tempos em tempos e mesmo com os olhos fechados, tinha a sensação de estar dentro da película de um filme, um sono quadro a quadro, até despertar com o barulho da porta do carro se abrindo.




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sexta-feira, 21 de abril de 2006

Fuga






Depois que golpeou Amadeus, sentiu pena, remorso, culpa. Foi o único que a compreendeu naquele lugar, apenas ele estendeu-lhe a mão com carinho, talvez até se amassem. Cecília nutrira bons sentimentos por ele, mas isso não a impediria de fugir, queria sentir-se solta, longe dali, injetou-lhe todo o conteúdo da seringa, que estava pré-destinada à ela.
Não sabia distinguir seus próprios sentimentos, como interpretar os alheios?
Deu-lhe um beijo aos prantos, sentiria sua falta, acariciou sua face e deixou-se recostar em seu peito pela última vez. Espiou o corredor, tudo estava vazio e silencioso, pelo adiantado da hora as pessoas provavelmente estavam dormindo.
Assustava-se com cada sombra, com cada mínimo barulho que ouvia, foi assim até alcançar o banheiro feminino. A luz era forte e branca, feriam os olhos noturnos e assombrados, quando se acostumou com a claridade, olhou-se no espelho, no que se transformara? Não podia crer que era ela refletida ali, um animal acuado, com medo da própria sombra, olhos esbugalhados, respiração rápida e inconstante.
Tinha que ficar calma, encheu os pulmões de ar, como se aquilo ajudasse, de algum modo, apertou sua mão direita sobre o peito, num acalanto de si e começou a revirar os armários e em um deles encontrou um uniforme de enfermeira, vestiu-se, penteou-se, olhou-se mais uma vez para se certificar que estava bem disfarçada, não pretendia ser notada e saiu descalça pelos corredores por não encontrara nenhum sapato.
Mas quem olharia para os seus pés agora, todos dormiam. Ao encontrar a última porta, o vigia levantou a cabeça se despedindo, “boa noite, Marie!” Ela respondeu com um breve cumprimento, sem encarar o homem e saiu.
Olhou para a vastidão escura que a esperava, não havia lua naquela noite, as estrelas cintilavam plenas, como se soubessem que ela estava solta e as luzes amareladas dos postes não abriam tanta claridade quanto ela precisava. Um calafrio percorreu-lhe a espinha, estava livre, mas para onde ir?
Quase sentiu saudade da clausura, do barulho de suas abelhas, da beleza de seu jardim, dos carinhos de Amadeus.
Sentiu em seu íntimo que a liberdade utópica era menos complicada que a verdadeira. Não queria pensar em nada, queria seus pensamentos livres como ela, soltos, descalços, sem direção, sem regras. Respirou fundo e correu o quanto suas pernas permitiram.
Depois de uma caminhada frenética, encontrou um banco de praça e se sentou, os pés tinham bolhas, alguns pedregulhos estavam presos entre a pele, enquanto arrancava-os sem o mínimo cuidado, os ferimentos sangravam, o seu corpo pedia para se deitar, mas na cabeça uma voz alertava-a, se parasse agora seria capturada e levada de volta, e isso não queria.
O dia já estava amanhecendo, logo perceberiam sua fuga. Olhou em sua volta, só havia um bêbado deitado na sarjeta, cantarolava algo, mas ela não distinguia o que, ali sentada, observou em uma vitrine sapatos carmim, lindos, flamejantes. Uma pedra e os sapatos estavam em seus pés, mais uma vez fugia. E o bêbado gritava, “agora ela tem sapatos vermelhos, a enfermeira tem sapatos vermelhos!”
Sentia fome, sede, medo. Depois de ter andado muito e o dia estar claro, avistou uma pequena cafeteria, entrou, sentou-se. A atendente veio e ela pediu apenas um copo d'água. A moça com uma saia curta e olhos gentis, logo trouxe a água. Cecília bebeu de uma só vez e levou as mãos ao bolso, dissimulando o esquecimento do dinheiro. “A água é por conta da casa”, disse a atendente, comentou que não parecia bem, se precisava de ajuda, Cecília perguntou onde ficava o banheiro.
Viu-se no espelho assim que entrou e sua aparência estava péssima, ligou a torneira e passou água pelo rosto, pescoço, e ajeitou os cabelos mais uma vez. Os olhos estavam apáticos, seu pavor era tanto que seu coração ecoava dentro de seus ouvidos. Revirava o pescoço, com vigor e passava a mão pela nuca, tentando relaxar um pouco.
“Precisa de ajuda?”, perguntou uma senhora bem idosa, com vestido colorido, com muita maquiagem nos olhos, cabelos que de tão acinzentados pareciam azuis e uma voz compadecida e carinhosa, insistia, “se precisar de alguma coisa é só pedir!”
Acenou que não, com a cabeça e a senhora completou, “deve ter sido uma noite difícil!”. Cecília em silêncio respondeu: "não imagina o quanto!" e sorriu.
Olhando-se no espelho e sua imagem invertida faz uma pergunta perturbadora: "fugira de si mesma, todo esse tempo?"

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quinta-feira, 20 de abril de 2006

No sanatório



No sanatório
Ali deitada, no meio de sua urina e de suas secreções, mais parecia um bicho sujo, feio e repugnante. Os seus conselheiros naqueles dias sumiam, não davam conselhos nem a culpavam. Recordava de suas horas, de suas noites, antes de estar ali. Unhas pintadas num carmim encarnado, cabelo sempre arrumado e do cheiro de lavanda que tinha. Não era mais nem a sombra daquela mulher, finalmente estava livre das pessoas, das taças cintilantes, dos burburinhos, das risadas falsas, das superficialidades. Tinha saudade do vinho de boa safra, de seus cigarros.
O canto mais escuro daquele quarto a acalentava. Mesmo com todas as perturbações diárias, ouvir os gritos que vinham de fora, despertar no meio de sua própria imundice, sentia-se melhor ali do que no meio de tanta hipocrisia.
De sua janela gradeada podia ver o jardim, cheio de margaridas brancas, petúnias, havia manhãs que as rosas sussurravam, riam-se dela e em outras as abelhas faziam um barulho ensurdecedor.
Logo uma enfermeira perceberia que ela estava acordada e viria cuidar dela.
As pessoas daquele lugar a tratavam bem, só fugiam à regra quando tinham seus problemas pessoais, descontavam nas injeções, na maneira de tratar os pacientes. Por suas mãos sabia quando estavam bem ou não.
Elas eram boas, davam-lhe banho, falavam com ela, mas preferia os enfermeiros, eles eram tão cuidadosos.
Agora limpa e composta em sua camisola de algodão cru, sentia-se mais humana. Bem que ele poderia chegar agora, ver seus cabelos ainda molhados, seus olhos calmos de abril. Seu coração batia no compasso dos passos dele, o sentia bem antes que entrasse no corredor, vinha com seu jaleco branco azulado, que cheirava água sanitária, sua marcha percorria toda a ala, para depois invadir seu quarto.
Seus passos tinham um barulho diferente, cada passo dele era um orgasmo latente nela.
Suas passadas aproximavam-se sisudas até a porta de seu quarto, mas quando entrava e fechava a porta parecia trazer toda ternura em seu olhar. Ele trazia a civilidade que ela necessitava, trazia suas mãos, com seus dedos finos e toque suave. Ouvia seus batimentos cardíacos, viraria seus olhos, olharia sua língua.
Seus dedos fugiam do estetoscópio, procurando os seios e naquela altura ela se lembrava de como eram os homens, só queriam saber de si, mas ela já não se importava mais, tinha sido mandada para aquele inferno, por ter descoberto seu marido infiel e pedófilo. Conhecia bem os homens, pelo menos com aquele era diferente, ele a usava e ela tinha consciência disso e o usava também. Talvez nem soubesse dizer quem era a vítima real do assédio, olhava-o com desejo e queria-se limpa para esperá-lo.
Já havia perdido a conta de quantas vezes ergueu a camisola, para que a olhasse, para que a tocasse. E numa noite de surto psicótico seus dedos descobriram seu colo, seu sexo e tudo o que queria acontecera ali.
Apenas suas visitas quebravam as crises temperamentais, a vontade de gritar e de se matar. Ele não sabia, mas se tornara o sentido da vida dela, embora César sempre aparecesse para visitá-la, ele era como um irmão, respeitoso demais.
Enquanto gozava, pedia baixinho por mais calmantes, queria ficar desacordada, chegava desejar ser estrangulada, por não suportar mais a vida.
Ela não tinha cura, se ele a liberasse se mataria. Esquizofrenia, alucinações, faziam parte de seu quadro clínico. Jurava ter feito sexo com todos os enfermeiros dali, mas nenhum admitiria tal fato. Mas o psiquiatra era sua razão de viver.
No fim, ele tinha o cheiro dela em seu jaleco, que já não estava tão alvo, ela recebia uma dose de calmante e dormiria até o outro dia, para acordar no meio se suas secreções.
Mas naquela noite, tudo seria diferente, ela conspirava meses consigo mesma, até pensar em uma maneira de se livrar de tudo.
(...)





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Colcha de retalhos



Colcha de retalhos

Resolveu pegar toda a roupa velha e confeccionar uma colcha de retalhos, como sua avó paterna a ensinara tão bem. Camisas e calças velhas iam se transformando em pequenos quadrados de retalhos de tecidos. Assim era sua vida, uma colcha de retalhos, os fatos pareciam calças e camisas, mas na realidade eram apenas fragmentos de uma colcha de acontecimentos. Estava cansada de fugir de si mesma e de seus monstros internos, tinha todas as chaves, talvez encontrasse algumas portas.
Otávio era um homem bom, por isso ainda insistia em viver com ele todo aquele tempo. Nem um pouco parecido com Fábio, o boníssimo e respeitado: Dr. Fábio Ontero, médico, um dos mais conceituados em cirurgia plástica da região, que a tratava como uma boneca de louça aos olhos alheios, mas tinha várias amantes e uma vida dupla. Não queria relembrar daquele crápula infame, aquele sim sabia onde golpear.
Escolhia os retalhos mais coloridos para costurar.
A imagem dele com a filha de Carmen era inesquecível, as descobertas sobre a vida secreta dele deixou marcas.
Lembrava-se da morte trágica de sua filha, do quanto ele era culpado por tudo aquilo e as lágrimas molhavam os retalhos avulsos.
Naquela noite havia convidados, a casa estava cheia e bem que César tentou alertá-la sobre casar-se com alguém que mal conhecia.
Fábio fazia questão daquelas festas, dizia que davam um brilho especial à vida, sem dizer que receber elogios era muito bom.
Cecília tinha como passatempo predileto, enquanto fora casada com ele, promover festas e eventos beneficentes. Depois que concebera Amanda as festas cessaram. Na primeira festa depois do nascimento de sua filha estava muito satisfeita, pois os donativos dariam para abastecer o orfanato por mais de um mês.
As taças estavam cheias do melhor champanhe, música agradável, ambiente amistoso, tudo maravilhoso, no padrão de todas que ela promovia. E na manhã seguinte estaria no topo de todas as colunas sociais, sabia que era invejada e aquele sentimento de êxtase, por hora, acalentava os seus males. Gostava também de se sentir útil, mas os peitos pediam a filha, procurou por Fábio, para que ficasse de olho no andamento do Buffet, mas não encontrou. Avisou então para a governanta que iria se ausentar e que se sentissem sua falta, para que pedisse desculpas e contasse que ela foi alimentar a filha. Lembrava-se costurando retalho a retalho.
Subiu os dois lances de escada em silêncio, tentando enxugar os seios molhados, teria que trocar a blusa, agora toda molhada de leite, quando levanta os olhos depara-se com a cena, Fábio e a filha caçula de Carmen, uma menina de doze anos, não acreditava em seus olhos, aquilo não poderia estar acontecendo, não agora, não ali.
Perdeu o controle e começou a gritar compulsivamente. Apavorado, Fábio a golpeou, ela escorregou desmaiada por um dos lances da escada, enquanto a menina ajeitava o vestido, ele ordenou, “vá para o banheiro e só saia de lá quando eu mandar!”
Aplicou em Cecília um calmante forte e a levou para o quarto. Supôs que ela fosse dormir a noite toda e desceu com a menina pela escada auxiliar, que dava para os fundos da casa, continuando com a fornicação, enquanto não dessem por falta deles.
Mas com o bebê chorando, Cecília se levantou e colocou o peito em sua boca e adormeceu depois que a filha silenciou. A criança tentava vencer o seio pesado, mas era inútil, estava fadada àquela morte cruel. Como estava dopada, não percebeu que sufocara a criança com o próprio seio, impedindo o seu bebê de respirar. Alguns retalhos esgarçavam e os substituía por outros.
Só foi descoberta durante a madrugada, quando Fábio voltou para o quarto, esse não pensou duas vezes, resolveu o problema de seu jeito, tomando-a como louca e internando-a em um sanatório.
Toda família o apoiou incondicionalmente, afinal que mãe era aquela, que sufocara a filha com o seio? Pobre homem, tão distinto, tão bonito, tão desejável, se casar com uma louca, uma desequilibrada mental? E encontrar a pequena filha morta, sufocada pela própria mãe, quanta dor!
Em uma de suas visitas, Fábio finalmente confessou ter aplicado-lhe um calmante forte, naquela noite e que não supunha que ela conseguisse se levantar. Fugir daquele sanatório foi umas das fagulhas de sanidade que ainda lhe sobraram, só parou de sentir pena de si depois da confissão de Fábio, estava livre dele, mas não de si mesma, das culpas das neuroses. Quantos retalhos ainda, quantas chaves sem porta!